terça-feira, dezembro 27, 2005

Adeus Ano Velho...

2005 foi um ano agitado, que passou muito rápido. Como lembraremos dele em um futuro não muito distante? 2005 foi o ano em que New Orleans teve seus dias de Bangladesh e o Brasil descobriu o verdadeiro PT e a genialidade suprema de um Ronaldinho. Teve Bruna Surfistinha, atentado em Londres, Roberto Jefferson (como ainda não deram um talk-show pra ele?), livro novo do velho Rubem Fonseca, Fernando Meirelles invadindo Hollywood, gravações inéditas de Bird & Diz e Monk & Trane descobertas, Habemus Papam, cocaleiro eleito na Bolívia, Skype, Daspu, bois ensandecidos invadindo açougue no Largo 13, Maluf preso, petróleo batendo recordes, eleições no Iraque, Pelé e Maradona batendo bola, rampa anti-mendigo, Pearl Jam no Brasil, casamento do Elton John, mulheres vencendo eleições na Libéria e na Alemanha, Argentina caindo no grupo da morte da Copa, curva de juros invertida, morte da Velhinha de Taubaté, sucessor do maestro Greenspan, Burger King e Stella Artois em versões tropicais, um sonho do Jorge Ben se realizando (dólar caiu e o “cruzeiro” subiu), documentário insosso sobre o Vinícius, Bola de Fogo e a sua Atoladinha, julgamento do Michael Jackson, o welfare state convulsionando na França...

Alguns fatos do próximo ano são perfeitamente previsíveis: vamos nos enojar com a campanha eleitoral. O trânsito de São Paulo vai continuar batendo recordes. Os economistas vão errar todas as previsões de câmbio e juros. A Gisele Bündchen vai continuar linda, o Rio de Janeiro vai seguir em trajetória decadente. Vou continuar admirando as colunas do Tostão e achincalhando as do Stephen Kanitz. O pessoal do Google vai bolar mais uma invenção brilhante e inesperada – é capaz que o Steve Jobs também o faça. A Disney vai lançar dois ou três filmes insossos. Algum novo hit do funk carioca vai assolar o país. A Globo vai organizar pelo menos 8 mundiais e mundialitos de futebol de areia, dos quais 7 finais serão entre Brasil e Portugal.

Incertezas temos aos montes, na medida para temperar nossas existências. Para ficar só na minha praia econômica, creio que a maior dela seja saber até quando vai durar e de que jeito vai terminar a dinâmica China produz barato-EUA importa, organiza, agrega valor, consome e se endivida-China, resto da Ásia e exportadores de petróleo poupam e financiam a dívida americana. Alguém arrisca um palpite? Alguns bons podem ser encontrados aqui e acolá.

Torço muito por certos acontecimentos, que nem são tão delirantes: torço para que o Brasil ganhe um presidente honesto e disposto a fazer as reformas de que tanto precisamos – infelizmente, para alguns, isso significa o Lula ser varrido do Planalto. Torço para que o Paul McCartney passe com a mega-turnê “Now I’m Sixty-Four” pelo Brasil. Torço pro Vargas-Llosa ganhar o Nobel de literatura, pra Fernanda Lima posar para a Playboy, pra que a situação pelo menos comece a melhorar (ou deixe de piorar) no monte de países pobres deste mundo. Pro João Gilberto sair da toca e fazer alguns shows sublimes, e pra EMI tomar vergonha na cara e fazer uma reedição decente dos primeiros discos dele. Torço pela paz, pela alegria, pelo amor e pelas moças bonitas. Torço pra que a final da Copa seja Brasil x Argentina, que cada time acabe o jogo com 8 jogadores e que o Ronaldinho faça chover nesse jogo, que entraria para a história como “a batalha de Berlim”. E, acima de tudo, torço para que as pessoas queridas tenham a saúde, a serenidade e a inteligência necessárias para fazerem de 2006 um grande ano, para si próprias e para todos aos seus redores. Oxalá!

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Cozinhando Para Fora


A digníssima amiga Vanessa conseguiu a façanha de me tirar da inércia criativa dos últimos tempos, me convidando para escrever para o site que ela edita, o Morfina. Não dava para negar tal honraria. Confira lá o texto sobre Machistas & Feministas. E aproveite pra conhecer o resto do site, vale a pena.

Link: http://www.morfina.com.br/contraindicacao.asp?texto=1013&edicao=62

segunda-feira, outubro 10, 2005

Bela

Bela, ela sempre foi a mais bela
Com uma flor no cabelo e um sorriso disfarçado
Ele nunca soube se a idolatrava ou se a desprezava
Optou pela idolatria, não funcionou
(ela era auto-suficiente demais para aceitar ser bajulada)
Ele percebeu, passou a adotar o desprezo
E foi aí que ele a perdeu, definitivamente
(ela era mulher demais para se sentir desprezada).

quarta-feira, setembro 07, 2005

Três Ilustres Conhecidos

Albert Ayler foi um dos grandes saxofonistas do free jazz.O Free jazz, como se sabe, teve origem quando todos surtaram e decidiram que essa história de ritmo, melodia e harmonia tinha ficado para trás e podia ser jogada no lixo. Cada músico faz o que der na telha, liga-se o gravador e tem-se um disco completamente original e impossível de ser reproduzido em outra ocasião. É indigesto à primeira audição (algumas vezes à segunda, terceira, quarta...), mas, como algumas outras boas coisas da vida, você só passa a descobrir o prazer implícito naquilo depois de algum tempo de adaptação e experimentação. Algo como ter uma recompensa por tanto insistir. Enfim, Ayler era um radical mesmo entre os radicais. O seu sopro é inconfundível: ríspido, intenso, com muito vibrato. Obviamente era um maluco: um dos seus discos chama-se “Music is the Healing Force of the Universe”, que é uma boa pista da relação que ele tinha com a música. Ayler considerava-se uma espécie de enviado dos céus, suas performances teriam uma inspiração divina e tinham por missão espalhar a paz pelo mundo. Seu mentor musical e espiritual na Terra não podia ser outro que não um tal de John Coltrane. Outra influência na sua música foram as marchas militares, já que ele serviu por um tempo no exército americano. Sua passagem pela vida foi intensa e rápida: seu corpo foi encontrado boiando em um rio de Nova York. Até hoje não se sabe a causa da morte.

Sonny Rollins foi e ainda é um colosso do saxofone tenor (como ele mesmo já se intitulou), um dos maiores da história. Foi um improvisador magistral, com solos longos e incrivelmente coesos. Passa a impressão de ter domínio completo de sua música e do seu instrumento, a segurança e o equilíbrio em pessoa. Em 1959, aos 29 anos e no auge da carreira, Rollins deixou de lado toda a segurança e o equilíbrio e desapareceu, deixando de se apresentar e de gravar. Por dois anos os admiradores do jazz ficaram se perguntando o que teria o motivado a tomar uma atitude tão radical. Dizem que Sonny era visto com o seu instrumento à noite, sozinho, sobre uma ponte, tocando para as águas do rio. Ao que parece, Sonny Rollins chegou ao auge muito cedo, e talvez tenha sido tocado pelo mesmo sentimento que levou outros gênios – Jimi Hendrix, Charlie Parker, Maradona, e a lista vai longe – o que fazer quando se percebe que o caminho à frente levará, inevitavelmente, à decadência? Alguns optam pela auto-destruição. Ele optou pela reflexão, pela busca do amadurecimento. Demorou, mas deve ter encontrado. Voltou à cena musical com o brilhantismo habitual e segue, até hoje, encantando os seus ouvintes.

Niels-Henning Ørsted Pedersen é o contrabaixista de nome mais cool da história do jazz - qual outro tem essa letra-conjunto vazio no sobrenome? Algum leitor nórdico poderia me corrigir e dar o nome correto da letra – Niels-Henning nasceu na Dinamarca. Os americanos, com a sua tão característica praticidade, juntaram suas iniciais e optaram por chamá-lo simplesmente Nhop. Nhop morreu em abril deste ano, com apenas 58 anos, depois de ter tocado com boa parte dos monstros sagrados do jazz e chegar a ser chamado de “Paganini do contrabaixo”.

A história do jazz e de seus protagonistas é tão ou mais interessante do que a música em si. A liberdade (talvez o mais sublime e ambíguo dos sentimentos) que se percebe ao ouvir ou ler a respeito é o grande legado que esses e tantos outros homens excepcionais nos deixaram. Um brinde a eles.

segunda-feira, setembro 05, 2005

Sinal Fechado


(nota: este texto é duplamente desonesto. Primeiro, porque foi escrito há uns dois anos; segundo, porque foi feito em cima de uma música do Paulinho da Viola, depois gravada pelo Chico Buarque. Mesmo assim, passou pelo meu senso crítico e aqui está. Espero que os músicos citados acima não me processem pelo uso indevido.)

Ele vinha trafegando pela larga avenida, em quarta marcha. Viu o semáforo passar para amarelo, reduziu para a terceira. Freou quando a luz vermelha se acendeu. Na faixa a sua direita, parou um outro carro. Um modelo popular, prateado, bem cuidado. Carro de mulher, pensou. Olhou para o lado e reconheceu o rosto que estava ao volante. Quanta coincidência! Não podia ser por acaso, um reencontro desses acontecer num singelo cruzamento, num sinal fechado. Ela também o viu, os dois abaixam o vidro quase que simultaneamente. Ele sorri, ela corresponde, sem muita convicção. Depois de experimentar alguns instantes de completa paralisia, ainda baqueado pelo reencontro, ele diz, com a voz meio rouca:

- Olá, como vai?
- Eu vou indo, e você, tudo bem?

Meu Deus, todo aquele tempo passado e a mesma voz! Um pouco estridente, mas mesmo assim agradável. Agradável e fria, naquele encontro inesperado. Mas ela mudou, como mudou. O cabelo, antes tão negro, agora ostenta algumas mechas loiras. Não que tenha ficado mal, até que combinou com os olhos, castanho claros, quase cor de mel. Ela não usava óculos, mas ficam bem nela, dão um ar intelectual inesperado. Os lábios, ah, os lábios, esses permaneciam sensuais, convidativos. Estava bem vestida, nada a ver com o visual calça jeans-camiseta que ele tanto se acostumou a ver. E havia ainda uma mudança mais profunda – sem saber porque, ele a achou mais – como dizer – mais mulher. Todos aqueles anos... Finalmente ele lembrou-se de que tinha que falar alguma coisa, maldita timidez, achou que a experiência em lidar com tantas pessoas diferentes e desconhecidas no trabalho o tivesse livrado desse muitas vezes defeito, mas ele teima em voltar, justo nas horas em que deveria parecer seguro, decidido...

- Tudo bem, eu vou indo, correndo, pegar meu lugar no futuro, e você?

O que é isso?! “Pegar meu lugar no futuro”!!! A velha e estúpida mania de inventar expressões para impressionar. Mas ela não era suscetível a essas demonstraçõezinhas de inteligência e criatividade, anos de convivência a vacinaram. Péssimo, péssimo... Ela devolveu, com um sorriso de ironia:

- Tudo bem, eu vou indo, em busca de um sono tranquilo, quem sabe?

Ele não sabia, e continuava embasbacado. Quanta segurança, quanta convicção, quanto sarcasmo... em nada lembrava aquela adolescente frágil, que chorava ouvindo músicas de Tom e Vinícius. Ela o fitava, o mesmo sorriso no rosto, esperando, pensou ele, a próxima resposta idiota. E ele correspondeu:

- Quanto tempo...

Quanto tempo? Bastante, já que nenhum dos dois era capaz de precisar a última ocasião em que haviam se falado. Cinco anos? Talvez sete, ou até mais. Tanta coisa aconteceu... O fim da faculdade, o emprego, as promoções, a desilusão com a carreira. As aulas na universidade, a morte do pai, o futebol aos fins-de-semana. As viagens, ele que gostava tanto de viajar acabou o fazendo muito mais frequentemente por conta dos negócios. Os quilos engordados, os cabelos que caíram, os sonhos, alguns realizados, outros esquecidos e uns tantos guardados, esperando a hora de serem concretizados. A voz, estranha e tão habitual, o tirou desses pensamentos:

- Pois é, quanto tempo...

Dessa vez ele sentiu uma mudança naquele ar seguro de si que ela ostentava. Teria ela se lembrado de alguma coisa, algum momento especial? Ou seria uma simples resposta-clichê para uma afirmativa-clichê? Não havia tempo para muitos devaneios, o encontro estava fadado a ser breve.

- Me perdoe a pressa... é a alma dos nossos negócios.

Mais um clichê. Mas, que diabos, que obrigação temos em sempre usar expressões criativas? Isso é coisa para publicitários e seus egos inflados. Lembrou que um dia havia pensado em estudar publicidade, se gratifica por ter acertado ao menos uma vez na vida.

- Qual, não tem de quê. Eu também só ando a cem...

Pensou em dizer algo do tipo “então preste atenção aos postes”, ou “nunca se esqueça de usar o cinto de segurança”, mas já havia esgotado sua quota de frases engraçadinhas. O que será que ela está fazendo da vida? Estava bem vestida, parecia a caminho do trabalho. O carro não era dos mais caros, mas era novo. Teria conseguido construir uma carreira bem sucedida? Pós-graduação, cursos no exterior? Será que ela ainda morava com os pais? Podia ter se casado! Olhou apressadamente, tranqüilizou-se a não ver nenhum sinal de aliança na mão esquerda. Mas ela odiava usar jóias, dava muito bem para ter se dispensado dessa obrigação. Pensou em perguntar, mas ia pegar mal. E o sinal ia abrir logo, ele precisava dizer algo, rápido!

- Quando é que você telefona? Precisamos nos ver por aí...

Nem desconfiou que ela podia não ter mais o seu número. Ou que ele podia ter sido mudado, perdido, extinto. Muito menos desconfiou que sua frase pudesse ter soado pretensiosa, quase arrogante. Surpreendentemente, ela respondeu:

- Pra semana, prometo, talvez nos vejamos, quem sabe?

Que obra-prima de obscuridade! Ficou sem saber o que pensar. O tom não foi irônico, nem enfadonho. “Pra semana” significava em breve, estavam na terça-feira, podia ser até domingo... não, ela não vai querer fazer nada no fim-de-semana, deve ser cheia de amigos, tem a casa da família na praia, tudo o que ela não ia querer para os raros dias de descanso era sair com o ex-namorado. No máximo ia se permitir ir a algum bar, talvez um jantar em algum restaurante da moda. O “prometo” tornava tudo mais verossímil, ela não costumava deixar de cumprir suas promessas – por mais que ele, pessimista, tente buscar no passado uma ocasião em que ela faltou com a palavra, não consegue encontrar nenhuma. Sinceridade sempre foi uma de suas maiores virtudes – e um de seus piores defeitos, em algumas poucas ocasiões. Mas em seguida veio o “talvez”, estragando, deixando tudo muito vago e impreciso – mais ainda depois do “quem sabe?”, tudo para deixá-lo ainda mais confuso. E, confuso, ele repetiu:

- Quanto tempo...
- Pois é, quanto tempo...

Mais lembranças, o primeiro beijo, o cheiro de seus cabelos, as longas caminhadas, as decepções, os filmes que viram juntos, os livros que trocaram... que loucura, todo um passado comprimido num cruzamento, já não sabia se tinha agido certo ou se devia ter fingido que não viu e andado mais um pouco com o carro. Tanta coisa a perguntar, a dizer...

- Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das ruas.
- Eu também tenho algo a dizer, mas me foge à lembrança.

Mentira! Ela tinha a melhor memória que ele jamais encontrou. Era sempre ela que o lembrava de todas as datas, inicialmente as deles e depois dos aniversários de amigos e familiares. Ela nunca esqueceria algo a dizer, nunca... mas depois perdoou-a, tudo poderia ser dito em uma ocasião mais propícia. Fizeram o mais difícil, se encontraram sem querer, agora poderiam voltar a se falar, quem sabe se darem bem novamente, se gostaram tanto por tanto tempo...

- Por favor telefone, eu preciso beber alguma coisa, rapidamente.
- Pra semana...

Ele queria que ela ligasse em meia hora, quinze minutos, imediatamente! Sua curiosidade o maltratava, já imaginava os mil namorados que ela teve depois de deixá-lo, queria saber quais deles eram melhores que ele – quanto egoísmo! Queria voltar a entretê-la, falar dos discos que ouvira recentemente, da sua última viagem a África do Sul, olha, eu vi uma girafa na savana, não é tão grande quanto parece, além disso ela não consegue...

O sinal! A luz amarela já aparecia na outra avenida do cruzamento!

- O sinal...
- Eu procuro você.

Sentiu mais uma vez a velha sinceridade, acreditava nela, mesmo sem saber o que podia ter mudado em sua personalidade durante todos aqueles anos sem contato algum. Na transversal, o verde já despontava no semáforo.

- Vai abrir, vai abrir...
- Prometo, não esqueço.

Uma nova promessa, sem nenhum “talvez” ou “quem sabe” para atrapalhar. Sim, ia dar tudo certo, eles iam se ver novamente, conversar, coisas leves, sem traumas, finalmente poderiam ser amigos, haviam amadurecido o bastante para tornar isso possível. Viu a luz verde a sua frente, só havia tempo para mais um breve apelo:

- Por favor, não esqueça, não esqueça...

Os carros na frente da fila saíram, viu a pista livre a sua frente. Acabou o breve encontro, tudo estava nas mãos dela, como em tantas outras oportunidades.

- Adeus, adeus...

Não, adeus não! Tinha pavor de adeus, soava como algo definitivo, sem a menor possibilidade de volta... mas tinha de confiar nela, tinha, era só o que restava. Ela soltou o pé do freio e acelerou, decidida. Ele deixou uma lágrima escorrer pelo rosto cansado, viu o carro dela se afastar, um bicho de pelúcia, desses brindes de lanchonete fast food, grudado no vidro traseiro. Engatou a primeira, esperou que o carro de trás buzinasse e partiu, arrasado, porém com uma ponta de esperança.

sexta-feira, setembro 02, 2005

Mogadiscio, Louisiana

Falta de condições sanitárias. Incêndios criminosos. Seqüestros. Tiroteios. Saques em lojas e residências. Ataques a helicópteros do exército. O que parece ser a descrição de uma cidade africana em meio a uma guerra civil é a descrição de New Orleans depois da passagem do furacão Katrina. A maior parte da cidade está submersa e 60 mil pessoas se amontoam em um estádio, em busca de socorro. Não se sabe ao certo quantas são as vítimas fatais, mas já se fala em milhares. Os sobreviventes se desesperam com a falta de perspectivas e se digladiam, lutando para preservar o que sobrou de suas vidas.

O caldeirão (“gumbo” para os nativos) de culturas no século XIX, que misturava descendentes de escravos negros, franceses, espanhóis e americanos, criou uma cidade vibrante, o berço de uma das formas de arte mais fascinantes de todos os tempos (estamos falando do jazz, evidentemente) e que, até bem pouco tempo, era sinônimo de alegria e brilho. O gênio do trompete Louis Armstrong nasceu em New Orleans, bem como o Mardi Gras, o equivalente yankee para o nosso carnaval. Esse símbolo de uma era se transformou, em poucas horas, num grande pântano, em mais um daqueles episódios inevitáveis que a dona Natureza manda de vez em quando para mostrar ao insignificante homem quem é que manda. Não há o que fazer para amenizar um furacão, o que resta é procurar abrigo e torcer para que os danos sejam os menores possíveis. Infelizmente, não foi o caso dessa vez.

“When the levee breaks we’ll have no place to stay”. O blues de Memphis Minnie, composto há quase oitenta anos e imortalizado pelo Led Zeppelin, já alertava: New Orleans repousava quase toda abaixo do nível do mar, protegida por várias barragens (as tais levees), que continham a água de um lago e do rio Mississippi. Uma vez rompidas essas barragens, a cidade submergiu. As fotos que se vêem na imprensa, quando vistas sem a legenda, sugerem algum lugar como Bangladesh depois das monções. Uma tragédia que se repete quase que a cada ano no sudeste asiático agora ali, no quintal do Tio Sam.

É chocante notar a transição radical, de uma cidade moderna e civilizada para um estado de barbárie. Um desastre da natureza conseguiu a proeza de transplantar um pedaço do continente negro em um dos orgulhos dos Estados Unidos. New Orleans é hoje um fascinante e trágico laboratório a céu aberto de ciências sociais, que nos mostra que o homem, em sua essência, é um animal como qualquer outro, cujo objetivo final é lutar pela sobrevivência a qualquer custo. Na ausência de uma ordem social, o que se mostra é isso, e todas as suas conseqüências: os saques, roubos e toda a violência citada acima. Definitivamente, o homem não é bom por natureza – é egoísta e sórdido, pensa em si mesmo acima de tudo e de todos e não vê a moral como um obstáculo para os seus atos (aqui caberia uma divagação psicanalítica, mas não tenho conhecimento para tanto e quem me lê já deve estar cansado da minha veia freudiana). É o que sobra quando não há mais nada a perder. Já deveríamos estar cansados e até mesmo enojados de ver situações desse tipo – a África como a conhecemos já tem um bom tempo de estrada - mas às vezes é preciso que aconteça onde menos se espera para que se enxergue a real proporção que a tentativa de preservar a vida pode tomar.

Não é difícil vislumbrar um futuro razoavelmente próximo para New Orleans. Passada a fase de maior turbulência, as águas vão baixar (literalmente e figurativamente). Serão contados os mortos e a cidade será reconstruída, com toda a rapidez que a economia mais rica do mundo poderá proporcionar. Será erguido um memorial para as vítimas ou algo do gênero, e todos os anos a data será lembrada com consternação. Enquanto isso, continuaremos a olhar para a África (e todo o resto do mundo subdesenvolvido – não o nosso subdesenvolvimento de país “emergente”, algo muito mais profundo e desesperador) como olhamos para Netuno ou para uma obra de ficção. A National Geographic Magazine foi muito feliz em estampar na capa a frase: “Africa. Whatever you thought, think again”. Que essa tragédia sirva pelo menos para que o mundo pense e repense o destino de toda a nossa espécie. Porque é inaceitável imaginar que uma pessoa que não teve a sorte de nascer num pedacinho do mundo que tenha as mínimas condições para se desenvolver uma vida digna e alegre mereça um destino tão pior do que o nosso.

quinta-feira, maio 12, 2005

Mr. Otis (doesn't!) regrets

Quando, em 1853, o americano Elisha Otis criou o primeiro modelo de elevador como conhecemos hoje, provavelmente não imaginava que a sua invenção viabilizaria uma mudança revolucionária na construção civil e na urbanização, permitindo que os edifícios atingissem alturas até então inimagináveis. Para tentar mensurar esse impacto, basta imaginar o que seriam algumas grandes cidades sem os seus arranha-céus. Otis (cujo sobrenome batizou a maior fabricante de elevadores do mundo, atualmente) tampouco devia sonhar que o elevador se tornasse um dos lugares mais propícios para se apreciar o bicho-homem e suas pequenas psicopatologias. Aquela caixa metálica, que só faz se mexer para cima e para baixo, revela mais sobre a personalidade das pessoas do que muito divã de analista por aí.

Observar a atitude de quem entra em um elevador é um exercício delicioso. Poucos são os que agem com indiferença e limitam-se a apertar o botão do andar desejado e esperar pacientemente até chegar lá. Há quem olhe para o alto, numa demonstração de arrogância; há quem olhe para o chão, aparentando humildade. Por algum motivo, alguns prédios acham uma boa idéia meter um espelhão na parede dos fundos, o que desperta a vaidade de alguns, que ajeitam o cabelo, apertam o nó da gravata ou fazem uma careta. Tem gente que, mesmo vendo que já foi dada a ordem para o elevador ir para o mesmo destino que o seu, faz questão de apertar novamente o botão, “para garantir”. Alguns, não contentes, passam todo o tempo repetindo esse ato freneticamente, talvez na esperança de que com isso o elevador ande mais rápido.



Narcisismo, complexos de inferioridade ou superioridade, neuroses e manifestações de desejos ocultos são alguns dos fenômenos psicológicos que podem ser observados de forma corriqueira em um elevador. Porém, nenhum deles me chama tanto a atenção quanto o medo que algumas pessoas alimentam quando entram em uma dessas máquinas. Não olhei nenhuma estatística, mas acredito que os elevadores estejam entre os meios de transporte mais seguros existentes – transportam milhares (talvez milhões) de pessoas a cada minuto, com rapidez e precisão. Mas isso não basta para tranquilizar quem carrega essa estranha fobia. Muitos preferem subir ou descer vários andares pela escada de emergência a encarar o monstro engolidor de gente, e, quando isso é inevitável, sentem-se mal, permanecem absolutamente calados, encostados em um canto, torcendo para que o destino chegue logo. Basta qualquer barulho menos usual ou um chacoalhão para que esses entrem em pânico, achando que um cataclisma está para acontecer. E respiram aliviados, como quem acabou de deixar um avião que fez um pouso de emergência com as turbinas em chamas, asssim que a porta se abre e o andar desejado finalmente surge à frente.

Nos escritórios, os elevadores são palcos de inúmeros bons-dias, conversas de negócios, comentários inúteis sobre o tempo ou o trânsito, comentários relevantes sobre a rodada de futebol do final de semana, flertes, olhadelas para decotes e piadas sem graça, quando soa o alarme de excesso peso e todos culpam o gordinho que acabou de entrar. Nos condomínios residenciais, a criançada faz a festa, sacaneando os moradores ao apertar os botões de todos os andares. O elevador sempre ocupa um lugar de destaque nas listas de lugares “exóticos” preferidos para se fazer sexo. Como toda grande invenção, extrapolou a sua função original. É uma grande vitrine para se observar uma das dimensões mais espetaculares do ser humano: o inconsciente. Mr Otis e Freud dariam bons amigos, creio eu.

Pequeno "P.S." do texto anterior

Acabei de descobrir, lendo uma matéria que saiu na "Folha de SP" do último sábado, que o Rubem Fonseca foi um incentivador da carreira literária do Jô Soares. Isso comprova o que eu já desconfiava: ele é um ser humano, como eu e você, sendo também sujeito a alguns erros grotescos.

terça-feira, maio 10, 2005

Rubem Fonseca, 80

Na próxima quarta-feira (11), o mundo ganhará mais um ilustríssimo octogenário: Rubem Fonseca, talvez o maior escritor brasileiro vivo, assopra as suas 80 velinhas. Muito já foi e será dito nesses dias sobre sua obra e personalidade; vou dar a minha visão de leitor – completamente parcial e tendenciosa, já que me incluo na, a julgar pelas vendas de seus livros, numerosa legião dos admiradores desse mineiro (nasceu em Juiz de Fora) de alma carioca – sem a menor pretensão de fazer uma crítica consistente ou algo do tipo.

Eu “descobri” a obra de Rubem Fonseca numa época bastante apropriada. Tinha de 17 para 18 anos e estava na minha fase “rato de biblioteca”, frequentando assiduamente a Biblioteca Municipal John F. Kennedy. Abro um parêntese para fazer um reconhecimento: se tem algum serviço público que funciona razoavelmente (ou ao menos funcionava) bem em São Paulo, são as bibliotecas públicas. Apenas por ser cidadão, você tem acesso a acervos consideráveis, organizados e atualizados. É uma das formas mais simples e efetivas de se fazer justiça social: facilitar o acesso da população aos livros. Claro que só isso não é o suficiente, afinal de contas de nada adianta se o povão não sabe que existe ou não enxerga o valor desse tipo de serviço, e, nesse sentido, campanhas de divulgação e incentivo à leitura seriam muito bem-vindas. Aliás, acho que isso é em grande parte culpa do nosso sistema educacional, tema para outro texto. Fechando o parêntese e voltando ao tema principal: não sei direito o porquê (pode ter sido o fútil motivo de quase todos os livros serem publicados pela Companhia das Letras, minha editora favorita), mas um dia me chamou a atenção a estante repleta de obras de um tal Rubem Fonseca. Já tinha ouvido falar dele: a minissérie “Agosto”, baseada em um dos seus melhores romances, fez bastante sucesso na Globo; mas não tinha idéia de como era seu estilo ou de quais temas ele costumava tratar. Sendo assim, resolvi começar a explorar a obra “fonsequiana” por meio do recurso científico de escolher um livro pelo título mais atrativo. Caí em “Vastas emoções e pensamentos imperfeitos”. Depois desse pontapé inicial, em poucos meses devorei quase todos os seus outros romances e livros de contos. Um caso quase patológico de paixão por um escritor – quem gosta muito de ler com certeza coleciona um ou mais desses casos, nem sempre explicáveis racionalmente.



O gosto por Rubem Fonseca não costuma ser passível de meio termos. E é muito fácil malhar os seus livros. Os principais personagens de seus romances, o escritor frustrado Gustavo Flávio e o advogado-detetive Mandrake, são machistas, mulherengos e de difícil trato. Seus contos são povoados por tipos bizarros, incluindo anões, fisiculturistas, prostitutas que ouvem Beatles e aficionados por fezes. Fonseca faz questão de mostrar o quanto pesquisou e quão culto é, ao enfiar referências e teorizações sobre os mais diversos temas no meio de suas obras – e isso muitas vezes pode soar como pedantismo gratuito. E a pessoa Rubem Fonseca não faz a menor questão de se fazer simpática: disputa com Dalton Trevisan o título de escritor mais recluso do nosso país, não dá entrevistas, não posa para fotografias, não autografa, não mostra a casa e os filhos na “Caras”...

Então, por que raios este escriba está gastando os seus dedos escrevendo um texto puxando o saco do velhinho, e, o que é mais relevante, por que ele é tão lido e admirado? Bem, não tenho preocupação alguma em escrever algo relevante e, como disse acima, os jornais e revistas gastarão muitas páginas explicando, com muito mais propriedade, esse fenômeno. Da minha parte, posso dizer que gosto de Rubem Fonseca porque ele, acima de tudo, escreve extremamente bem. Subjetivo? Sim, claro. Vou tentar me explicar: Rubem Fonseca é um mestre na técnica de fazer fluir uma história. É uma espécie de senhor do tempo, cria suspense e o resolve quando acha conveniente, faz com que o leitor se coloque no lugar de seus personagens e tome partido nas situações, cria polêmicas e as destrói. Não é previsível, não tenta impor uma moral pré-fabricada, narra e deixa esse trabalho por conta do leitor. As referências que introduz em seus textos podem, em alguns casos, parecerem perdidas, mas nunca são inúteis: no mínimo fazem com que o leitor expanda o seu universo cultural e o incentiva a pesquisar sobre os temas que leu. Atiça a curiosidade pelo não corriqueiro, pelo submundo, pelo violento; e talvez aí esteja o seu diferencial e o que atraiu o grande público. Foi o primeiro cronista de um Rio de Janeiro violento e cruel, com o qual hoje estamos tão acostumados. Enfim, faz com que a leitura de seus livros, qualquer um deles, seja sempre uma experiência notável e um grande prazer. Stephen King disse uma vez que sua obra é o equivalente literário de um Big Mac com fritas; de forma tosca, eu diria que a obra de Rubem Fonseca encontra um equivalente gastronômico numa boa feijoada, um caldeirão de ingredientes esdrúxulos, que satisfaz plenamente alguns e causa embrulho no estômago de outros, e é brasileiríssima, por excelência.

Rubem Fonseca conseguiu conquistar um lugar ao sol na literatura contemporânea por causa e apesar de sua obra, sendo ele próprio um personagem complexo e contraditório. Fica aqui a minha homenagem aos 80 anos desse grande e prolífico escritor, e a torcida para que essa longevidade se estenda ainda mais.

Alguns bons textos inéditos e raridades de Rubem Fonseca podem ser lidos no site Portal Literal.

terça-feira, maio 03, 2005

A mente e o bebop

bebop (da Encyclopædia Britannica): also called bop the first kind of modern jazz, which split jazz into two opposing camps in the last half of the 1940s. The word is an onomatopoeic rendering of a staccato two-tone phrase distinctive in this type of music. When it emerged, bebop was unacceptable not only to the general public but also to many musicians.

Be-bop. Be-bop. Be-bop. É o som que os sapatos, de sola de couro e madeira, fazem de encontro ao chão, quando ele caminha no imponente piso de granito do caminho para o prédio de escritórios. Os sapatos sociais, desconfortáveis, barulhentos, vêm quase sempre acompanhados da dupla dinâmica terno e gravata. É quase impossível dissociar a imagem de alguém usando terno e gravata da impressão que ela causa: ou de uma pessoa importante, ou de um burocrata, ou de um segurança de porta de boate. Perdida no meio desses estereótipos está uma variedade incrível de outros profissionais. Advogados. Bancários. Vendedores. Office-boys. Pastores evangélicos. Nem tudo que reluz é ouro, nem toda gravata é sinônimo de poder. Pelo contrário. Muitos gostariam de ter o poder de aboli-la do vestuário, de trocar o be-bop pelo som da borracha ou do pé descalço em contato com o piso, intransformável em onomatopéia. Be-bop, be-bop. Três minutos. É o tempo-padrão de uma música dos tempos do be-bop, os antigos discos de 78 rotações não comportavam durações maiores;. é o tempo que ele leva para passar pelo granito e chegar ao carpete, onde o som é abafado. Acabou o bebop, é hora da marcha. Nada de síncopes, nada de variações no tempo. Disciplinada e previsível, é a vida no escritório.

A cabeça dele trabalha em compasso de bebop. Dissonâncias, idéias aparentemente sem sentido, mudanças e paradas súbitas. A diferença é que o resultado final nem de longe se parece com arte. Talvez seja o que Freud chamou de mal-estar da civilização, um egoísmo profundo, que não condiz com a vida em sociedade, sempre gerando conflitos. Talvez seja um desajuste temporário, facilmente resolvível com um tempo de férias. Talvez seja esquizofrenia, o bebop é esquizofrênico por natureza, uma constante desconstrução, não há linearidade, é a fronteira entre a genialidade e a loucura, fronteira tênue, muito mal demarcada. Talvez seja só incompreensão momentânea, afinal de contas anos passaram-se até que a revolução do bebop fosse assimilada e compreendida, mas, que diabos, não há revolução alguma na mente dele, pelo contrário, a rotina engole qualquer tentativa de rebeldia, provavelmente uma revolução seria a saída, e não a causa do conflito.



O bebop, e, por extensão, todo o jazz, teve dois grandes revolucionários, que atendiam pelos nomes de Charles Parker Jr e John Birks “Dizzy” Gillespie. Parker era saxofonista, Gillespie, trompetista. Parker era um gênio intuitivo, de personalidade irascível, com histórico de prisões, internações em sanatórios e duas tentativas de suicídio. Virou um mestre do sax alto após ser humilhado em algumas apresentações, passou a praticar com o instrumento 12 horas por dia. Era viciado em heroína, e, como não podia deixar de ser, a droga o levou à morte prematura, aos 34 anos.



Dizzy viveu longos 75 anos. Foi, junto com Louis Armstrong e Duke Ellington, um dos grandes embaixadores do jazz. Cuidou de ensinar ao mundo o que o bebop queria dizer, trouxe os ritmos latinos para o jazz, viajou pelo mundo inteiro. Sua imagem simpática e bonachona, com as bochechas enormes soprando o trompete, faz parte do inconsciente coletivo, como sinônimo de jazz. Com Parker, fez gravações e apresentações incendiárias. Entraram para a história. Um servindo de contrapeso para o outro: o médico e o monstro, o yin e o yang. Assim deve funcionar a mente humana, pensa ele, o equilíbrio da luta entre o racional e o instintivo, a loucura e a sanidade, o consciente e o inconsciente. Be. Bop. Ele descansa após o dia de trabalho, sente que precisa de uma revolução. Alguém disse que as grandes revoluções são feitas pelos conservadores. Talvez. Se a resposta estiver escrita, está nas partituras, e não nos livros.

quinta-feira, abril 28, 2005

# 11

Uma das primeiras lembranças de eventos esportivos que tenho é a final do futebol olímpico de 1988, em Seul. O jogo era Brasil x União Soviética, e a nossa equipe contava com, entre outros bons jogadores, Taffarel, Bebeto, Jorginho e um baixinho (1,69 m), na época com 22 anos, que atendia pelo até então pouco ouvido nome de Romário. Não me recordo do placar, o fato é que o Brasil perdeu o jogo e eu, como boa criança que era, chorei.

Cinco anos depois, já consagrado na Europa e até então vetado na seleção, Romário foi chamado como o salvador da pátria, para um jogo contra o Uruguai, no Maracanã. O Brasil andava capengando nas eliminatórias e precisava vencer aquela partida para garantir a ida ao Mundial de 94. O resto da história todo mundo sabe: ele meteu dois gols, salvou a cabeça do Parreira e o Brasil foi aos Estados Unidos.

A Copa foi a consagração definitiva. Romário pintou e bordou: marcou 5 gols (um deles particularmente memorável, na semifinal, um toque de gênio no meio da defesa holandesa) , deu passes para outros tantos, desviou-se sabiamente da bola chutada pelo Branco que seria o gol decisivo contra a Holanda, converteu o pênalti na final e ergueu a taça, como o grande herói da conquista. No mesmo ano foi eleito o melhor do mundo, como era de se esperar.

Depois do auge e do reconhecimento, nosso craque deixou o Barcelona e transitou entre o Flamengo e o Valencia. Experimentou a desilusão de ser cortado da seleção por contusão, às vésperas do Mundial de 98 (e tivemos que amargar o Bebeto fazendo dupla de ataque com o Ronaldo). Desde então, alterna bons e maus momentos, sempre jogando em clubes da cidade que nunca quis abandonar, o Rio de Janeiro.



Quem acompanhou tudo isso não teve como não se emocionar ontem, na despedida de Romário com a camisa da seleção. Tudo bem que era um jogo arranjado pela Globo, contra um adversário pífio, mas me arrepiei com o nanico dando a volta olímpica e sendo aclamado pelo Pacaembu, ao ser substituído. Mais uma vez, Romário não decepcionou, e conseguiu anotar mais um gol com a amarelinha. Fez também uma bela homenagem à filha mais nova, portadora da Síndrome de Down, ao mostrar uma camiseta que dizia: "Tenho uma filhinha que é down e que é uma princesinha".

Romário vai fazer muita falta nesse nosso mundo, cada vez mais pasteurizado e politicamente correto. Ele nunca teve vergonha de dizer o que pensava, por mais que fosse causar polêmica. Arrumou muita confusão por conta dessa característica - com Zico, com Zagallo, com Pelé (deu uma das melhores definições do Rei, ao dizer que "Pelé calado é um poeta, tinha era que colocar um sapato na boca"), com Ronaldo ("fenômeno de marketing" - não que eu concorde). Não gostava de treinar, de concentração, de dar atenção para a imprensa. Curtia mesmo era uma boa noitada, mulheres, carrões e fazer o que mais sabia: jogar bola - seja profissionalmente, seja nas peladas e partidas de futvôlei na praia. Na era da bajulação, da falsa humildade e da imagem, conseguiu se destacar apenas pelas suas habilidades e qualidades. Romário sempre foi Romário, um ser humano, com qualidades e defeitos, que não escondia isso de ninguém. Mereceria admiração apenas por isso, mas foi além e colocou o nome na história do esporte mais popular do mundo.

Ontem soltou mais uma de suas pérolas, mais característica, impossível: "Não sou unanimidade nem na minha família. Não sou exemplo pra ninguém. Diria ao Robinho para não fazer 90% do que fiz fora do campo. Mas, se ele fizer 60% do que fiz dentro de campo, estará muito bom". Amém, Romário, Amém.

quarta-feira, abril 27, 2005

Ave, Struz!

Esqueça fundos de investimento. Esqueça caderneta de poupança, ouro, petróleo. Ações? Nem pensar. Hoje em dia o negócio mais lucrativo do mercado é investir em avestruzes. Os simpáticos animais ganham cerca de 100 kg em um ano - superando em muito os meus sucessivos recordes de ganho de peso nos últimos tempos. Você compra o bichinho recém saído do ovo por R$ 1800, sabendo que ele valerá R$ 3200 em alguns meses - descontado os impostos e custos de criação, a rentabilidade é de quase 50%. Da avestruz tudo se aproveita, desde a carne (tenra, saborosa, nutritiva) até as penas. As avestruzes são robustas, dificilmente adoecem. Um ovo de avestruz equivale a 24 ovos de galinha - imagine o tamanho da omelete. Difícil não ficar fã dos estrutioniformes (parece xingamento, mas é a classificação científica dos bichões).



No Brasil, é muito fácil ter uma avestruz. Várias fazendas de criação captam recursos do público interessado em aplicar suas economias em algo mais, digamos, heterodoxo. Funciona mais ou menos assim: você procura uma dessas fazendas, transfere os seus recursos e a fazenda se compromete a usá-los na criação de avestruzes. Algumas até oferecem o número do chip usado para controle do rebanho - sim, sua avestruz existe fisicamente, e você pode até trocar o impessoal número fornecido por um nome mais simpático. Não sei o porquê, mas Gertrudes me parece um nome adequado para uma avestruz. Voltando ao tema: quando a Gertrudes ficar grandinha, vai para o abate (portanto, é prudente evitar a criação de vínculos muito fortes) e você recebe o lucro. Moleza, não?

Porém, como diria o economista ranzinza, "não existe almoço grátis". O mercado internacional de carne de avestruz pode entrar em colapso. O Joãosinho Trinta pode decretar que a era das plumas no carnaval carioca está encerrada. E, em se tratando do Bananão, o mais provável: a Gertrudes pode não existir. O seu suado dinheirinho, ao invés de virar uma avestruz, virou uma viagem para esquiar na Suíça - e você nem foi convidado! Alguém ainda lembra das Fazendas Boi Gordo? Releia o parágrafo acima, trocando "avestruz" por "boi". A mecânica era bem parecida, e muita gente embarcou nessa onda nos anos 90, no embalo da novela global "Rei do Gado". Inicialmente, rendimentos fantásticos. Você era aconselhado a reinvestir os seus ganhos nas fazendas - por que não? Depois de um tempo, entrou água. Era tudo uma grande picaretagem. Sorte de quem foi mais prudente e deixou a poupança embaixo do colchão.

Mas há como diminuir esses riscos. Vou comprar um ovo de avestruz, já fertilizado, obviamente. Minha cama vai virar um verdadeiro ninho. Convidarei os amigos para presenciar o nascimento da Gertrudes (com direito a distribuição de charutos), e a criarei como uma filha. Aceitarei doações de jornais velhos, para forrar o quarto que dividirei com ela. Trancarei a minha coleção de CDs em um armário, para evitar que Gertrudes os coma em um momento de fome. Com resignação, dormirei apertado quando ela se tornar uma adulta e atingir 2,7 m. Quando chegar o momento do abate, deixarei correr uma lágrima, mas levarei Gertrudes para o açougue (ou algo que o valha) com toda a honra que ela merece. Gertrudes morrerá com dignidade, será devidamente depenada, esfolada e esquartejada, sendo exportada para todo o mundo. E eu dormirei contente, com o meu espaço recuperado e o lucro no bolso. Sonharei com o nome da minha próxima avestruz: Isabel? Márcia? Clara? Dias felizes me esperam.