sábado, abril 08, 2006

Celebração

Conclamo todos os cidadãos! Que saiam de suas casas imediatamente, com suas roupas mais coloridas e vistosas. Que deixem as crianças à vontade, que se percam e depois se encontrem. Que tirem quanta água conseguirem dos poços, quero baldes e mais baldes passando de mão em mão até a grande praça, onde serão despejados. Que se forme uma imensa poça de lama, e que lá joguemos todos os nossos desafetos – lá certamente encontrarão as crianças, que não os levarão a sério, e é disso que eles precisam. Que as tavernas abram suas portas para aqueles que sempre delas foram expulsos: os mendigos, os sujeitos de reconhecida má índole, as donzelas formosas, os leprosos. Que essas mesmas donzelas formosas percam os pudores, e saiam às ruas com o busto à mostra – e pobre do bruto homem que ousar tocá-las; será penalizado não apenas com um banho de lama, mas será também impiedosamente chibatado pelos mais cruéis dos carrascos. Que os cachorros e pássaros sejam soltos, deixem estes últimos também fazerem a sua festa de liberdade; os cachorros são mais tolos, mesmo soltos continuarão a seguir os passos dos humanos.

Que soem os alaúdes, clarinetes e trompas! Que os músicos entreguem suas almas e produzam as mais intrincadas melodias e harmonias. Caçadores, corram! Adentrem a floresta com suas lanças, flechas e laços. Tragam as mais finas carnes de caça: javalis, cervos e tudo mais o que encontrarem. Lenhadores, acompanhem, e tragam muita madeira, de preferência aquelas que, quando queimadas, exalam finos perfumes. Usurários, nesta semana não se cobram juros, seria uma indecência! Todos os recursos devem ser alocados para a celebração. Que partam barcos rumo ao oriente distante, e que de lá voltem com canela, açafrão, faquires, tecidos de seda, exilados, animais exóticos. Os artesãos, que parem de gastar o tempo com produtos que possam ser vendidos, joguem fora esse pragmatismo e liberem o senso artístico, todos o têm! Talhem imagens de deusas nas cercas de suas casas, pinte sua família ou os barcos que partem.

Que os vis e torpes sejam contagiados por essa alegria, e terminem as celebrações, se não purificados, ao menos não tão mais vis e torpes. Que os generosos, de espírito nobre, saiam ainda mais enobrecidos. Que as moças solteiras consigam maridos fiéis e amorosos, mas não estúpidos e pacatos. Mestres, deixem de ensinar tolices disfarçadas pela erudição! Permitam que todo o conhecimento que vocês acumularam flua em forma de histórias fantásticas, que carreguem em sua simplicidade toda a sabedoria acumulada por quem entrou em nossa frente na fila da história.

Todos, sobretudo, celebrem! Celebrem a vida, em todas as suas facetas, não só as evidentemente boas, mas também as amargas, que se provam necessárias: fazem com que vivamos segundo o que postulou o grande humanista, que disse que o riso diário é bom, o riso habitual é insosso e o riso constante é insano. Deixem o siso de lado por um tempo, preocupem-se apenas em celebrar, em rir do próximo e de si mesmo. Se não tiverem motivos para celebrarem por si próprios, celebrem pelos vizinhos, amigos, familiares... Saiam de suas casas, saiam! A alegria é um dever cívico nos próximos dias, porque o tempo só tem nos trazido prosperidade, e esta senhora nunca está feliz quando não acompanhada de gozo e, por que não repetir?, celebração!