quinta-feira, maio 12, 2005

Mr. Otis (doesn't!) regrets

Quando, em 1853, o americano Elisha Otis criou o primeiro modelo de elevador como conhecemos hoje, provavelmente não imaginava que a sua invenção viabilizaria uma mudança revolucionária na construção civil e na urbanização, permitindo que os edifícios atingissem alturas até então inimagináveis. Para tentar mensurar esse impacto, basta imaginar o que seriam algumas grandes cidades sem os seus arranha-céus. Otis (cujo sobrenome batizou a maior fabricante de elevadores do mundo, atualmente) tampouco devia sonhar que o elevador se tornasse um dos lugares mais propícios para se apreciar o bicho-homem e suas pequenas psicopatologias. Aquela caixa metálica, que só faz se mexer para cima e para baixo, revela mais sobre a personalidade das pessoas do que muito divã de analista por aí.

Observar a atitude de quem entra em um elevador é um exercício delicioso. Poucos são os que agem com indiferença e limitam-se a apertar o botão do andar desejado e esperar pacientemente até chegar lá. Há quem olhe para o alto, numa demonstração de arrogância; há quem olhe para o chão, aparentando humildade. Por algum motivo, alguns prédios acham uma boa idéia meter um espelhão na parede dos fundos, o que desperta a vaidade de alguns, que ajeitam o cabelo, apertam o nó da gravata ou fazem uma careta. Tem gente que, mesmo vendo que já foi dada a ordem para o elevador ir para o mesmo destino que o seu, faz questão de apertar novamente o botão, “para garantir”. Alguns, não contentes, passam todo o tempo repetindo esse ato freneticamente, talvez na esperança de que com isso o elevador ande mais rápido.



Narcisismo, complexos de inferioridade ou superioridade, neuroses e manifestações de desejos ocultos são alguns dos fenômenos psicológicos que podem ser observados de forma corriqueira em um elevador. Porém, nenhum deles me chama tanto a atenção quanto o medo que algumas pessoas alimentam quando entram em uma dessas máquinas. Não olhei nenhuma estatística, mas acredito que os elevadores estejam entre os meios de transporte mais seguros existentes – transportam milhares (talvez milhões) de pessoas a cada minuto, com rapidez e precisão. Mas isso não basta para tranquilizar quem carrega essa estranha fobia. Muitos preferem subir ou descer vários andares pela escada de emergência a encarar o monstro engolidor de gente, e, quando isso é inevitável, sentem-se mal, permanecem absolutamente calados, encostados em um canto, torcendo para que o destino chegue logo. Basta qualquer barulho menos usual ou um chacoalhão para que esses entrem em pânico, achando que um cataclisma está para acontecer. E respiram aliviados, como quem acabou de deixar um avião que fez um pouso de emergência com as turbinas em chamas, asssim que a porta se abre e o andar desejado finalmente surge à frente.

Nos escritórios, os elevadores são palcos de inúmeros bons-dias, conversas de negócios, comentários inúteis sobre o tempo ou o trânsito, comentários relevantes sobre a rodada de futebol do final de semana, flertes, olhadelas para decotes e piadas sem graça, quando soa o alarme de excesso peso e todos culpam o gordinho que acabou de entrar. Nos condomínios residenciais, a criançada faz a festa, sacaneando os moradores ao apertar os botões de todos os andares. O elevador sempre ocupa um lugar de destaque nas listas de lugares “exóticos” preferidos para se fazer sexo. Como toda grande invenção, extrapolou a sua função original. É uma grande vitrine para se observar uma das dimensões mais espetaculares do ser humano: o inconsciente. Mr Otis e Freud dariam bons amigos, creio eu.

Pequeno "P.S." do texto anterior

Acabei de descobrir, lendo uma matéria que saiu na "Folha de SP" do último sábado, que o Rubem Fonseca foi um incentivador da carreira literária do Jô Soares. Isso comprova o que eu já desconfiava: ele é um ser humano, como eu e você, sendo também sujeito a alguns erros grotescos.

terça-feira, maio 10, 2005

Rubem Fonseca, 80

Na próxima quarta-feira (11), o mundo ganhará mais um ilustríssimo octogenário: Rubem Fonseca, talvez o maior escritor brasileiro vivo, assopra as suas 80 velinhas. Muito já foi e será dito nesses dias sobre sua obra e personalidade; vou dar a minha visão de leitor – completamente parcial e tendenciosa, já que me incluo na, a julgar pelas vendas de seus livros, numerosa legião dos admiradores desse mineiro (nasceu em Juiz de Fora) de alma carioca – sem a menor pretensão de fazer uma crítica consistente ou algo do tipo.

Eu “descobri” a obra de Rubem Fonseca numa época bastante apropriada. Tinha de 17 para 18 anos e estava na minha fase “rato de biblioteca”, frequentando assiduamente a Biblioteca Municipal John F. Kennedy. Abro um parêntese para fazer um reconhecimento: se tem algum serviço público que funciona razoavelmente (ou ao menos funcionava) bem em São Paulo, são as bibliotecas públicas. Apenas por ser cidadão, você tem acesso a acervos consideráveis, organizados e atualizados. É uma das formas mais simples e efetivas de se fazer justiça social: facilitar o acesso da população aos livros. Claro que só isso não é o suficiente, afinal de contas de nada adianta se o povão não sabe que existe ou não enxerga o valor desse tipo de serviço, e, nesse sentido, campanhas de divulgação e incentivo à leitura seriam muito bem-vindas. Aliás, acho que isso é em grande parte culpa do nosso sistema educacional, tema para outro texto. Fechando o parêntese e voltando ao tema principal: não sei direito o porquê (pode ter sido o fútil motivo de quase todos os livros serem publicados pela Companhia das Letras, minha editora favorita), mas um dia me chamou a atenção a estante repleta de obras de um tal Rubem Fonseca. Já tinha ouvido falar dele: a minissérie “Agosto”, baseada em um dos seus melhores romances, fez bastante sucesso na Globo; mas não tinha idéia de como era seu estilo ou de quais temas ele costumava tratar. Sendo assim, resolvi começar a explorar a obra “fonsequiana” por meio do recurso científico de escolher um livro pelo título mais atrativo. Caí em “Vastas emoções e pensamentos imperfeitos”. Depois desse pontapé inicial, em poucos meses devorei quase todos os seus outros romances e livros de contos. Um caso quase patológico de paixão por um escritor – quem gosta muito de ler com certeza coleciona um ou mais desses casos, nem sempre explicáveis racionalmente.



O gosto por Rubem Fonseca não costuma ser passível de meio termos. E é muito fácil malhar os seus livros. Os principais personagens de seus romances, o escritor frustrado Gustavo Flávio e o advogado-detetive Mandrake, são machistas, mulherengos e de difícil trato. Seus contos são povoados por tipos bizarros, incluindo anões, fisiculturistas, prostitutas que ouvem Beatles e aficionados por fezes. Fonseca faz questão de mostrar o quanto pesquisou e quão culto é, ao enfiar referências e teorizações sobre os mais diversos temas no meio de suas obras – e isso muitas vezes pode soar como pedantismo gratuito. E a pessoa Rubem Fonseca não faz a menor questão de se fazer simpática: disputa com Dalton Trevisan o título de escritor mais recluso do nosso país, não dá entrevistas, não posa para fotografias, não autografa, não mostra a casa e os filhos na “Caras”...

Então, por que raios este escriba está gastando os seus dedos escrevendo um texto puxando o saco do velhinho, e, o que é mais relevante, por que ele é tão lido e admirado? Bem, não tenho preocupação alguma em escrever algo relevante e, como disse acima, os jornais e revistas gastarão muitas páginas explicando, com muito mais propriedade, esse fenômeno. Da minha parte, posso dizer que gosto de Rubem Fonseca porque ele, acima de tudo, escreve extremamente bem. Subjetivo? Sim, claro. Vou tentar me explicar: Rubem Fonseca é um mestre na técnica de fazer fluir uma história. É uma espécie de senhor do tempo, cria suspense e o resolve quando acha conveniente, faz com que o leitor se coloque no lugar de seus personagens e tome partido nas situações, cria polêmicas e as destrói. Não é previsível, não tenta impor uma moral pré-fabricada, narra e deixa esse trabalho por conta do leitor. As referências que introduz em seus textos podem, em alguns casos, parecerem perdidas, mas nunca são inúteis: no mínimo fazem com que o leitor expanda o seu universo cultural e o incentiva a pesquisar sobre os temas que leu. Atiça a curiosidade pelo não corriqueiro, pelo submundo, pelo violento; e talvez aí esteja o seu diferencial e o que atraiu o grande público. Foi o primeiro cronista de um Rio de Janeiro violento e cruel, com o qual hoje estamos tão acostumados. Enfim, faz com que a leitura de seus livros, qualquer um deles, seja sempre uma experiência notável e um grande prazer. Stephen King disse uma vez que sua obra é o equivalente literário de um Big Mac com fritas; de forma tosca, eu diria que a obra de Rubem Fonseca encontra um equivalente gastronômico numa boa feijoada, um caldeirão de ingredientes esdrúxulos, que satisfaz plenamente alguns e causa embrulho no estômago de outros, e é brasileiríssima, por excelência.

Rubem Fonseca conseguiu conquistar um lugar ao sol na literatura contemporânea por causa e apesar de sua obra, sendo ele próprio um personagem complexo e contraditório. Fica aqui a minha homenagem aos 80 anos desse grande e prolífico escritor, e a torcida para que essa longevidade se estenda ainda mais.

Alguns bons textos inéditos e raridades de Rubem Fonseca podem ser lidos no site Portal Literal.

terça-feira, maio 03, 2005

A mente e o bebop

bebop (da Encyclopædia Britannica): also called bop the first kind of modern jazz, which split jazz into two opposing camps in the last half of the 1940s. The word is an onomatopoeic rendering of a staccato two-tone phrase distinctive in this type of music. When it emerged, bebop was unacceptable not only to the general public but also to many musicians.

Be-bop. Be-bop. Be-bop. É o som que os sapatos, de sola de couro e madeira, fazem de encontro ao chão, quando ele caminha no imponente piso de granito do caminho para o prédio de escritórios. Os sapatos sociais, desconfortáveis, barulhentos, vêm quase sempre acompanhados da dupla dinâmica terno e gravata. É quase impossível dissociar a imagem de alguém usando terno e gravata da impressão que ela causa: ou de uma pessoa importante, ou de um burocrata, ou de um segurança de porta de boate. Perdida no meio desses estereótipos está uma variedade incrível de outros profissionais. Advogados. Bancários. Vendedores. Office-boys. Pastores evangélicos. Nem tudo que reluz é ouro, nem toda gravata é sinônimo de poder. Pelo contrário. Muitos gostariam de ter o poder de aboli-la do vestuário, de trocar o be-bop pelo som da borracha ou do pé descalço em contato com o piso, intransformável em onomatopéia. Be-bop, be-bop. Três minutos. É o tempo-padrão de uma música dos tempos do be-bop, os antigos discos de 78 rotações não comportavam durações maiores;. é o tempo que ele leva para passar pelo granito e chegar ao carpete, onde o som é abafado. Acabou o bebop, é hora da marcha. Nada de síncopes, nada de variações no tempo. Disciplinada e previsível, é a vida no escritório.

A cabeça dele trabalha em compasso de bebop. Dissonâncias, idéias aparentemente sem sentido, mudanças e paradas súbitas. A diferença é que o resultado final nem de longe se parece com arte. Talvez seja o que Freud chamou de mal-estar da civilização, um egoísmo profundo, que não condiz com a vida em sociedade, sempre gerando conflitos. Talvez seja um desajuste temporário, facilmente resolvível com um tempo de férias. Talvez seja esquizofrenia, o bebop é esquizofrênico por natureza, uma constante desconstrução, não há linearidade, é a fronteira entre a genialidade e a loucura, fronteira tênue, muito mal demarcada. Talvez seja só incompreensão momentânea, afinal de contas anos passaram-se até que a revolução do bebop fosse assimilada e compreendida, mas, que diabos, não há revolução alguma na mente dele, pelo contrário, a rotina engole qualquer tentativa de rebeldia, provavelmente uma revolução seria a saída, e não a causa do conflito.



O bebop, e, por extensão, todo o jazz, teve dois grandes revolucionários, que atendiam pelos nomes de Charles Parker Jr e John Birks “Dizzy” Gillespie. Parker era saxofonista, Gillespie, trompetista. Parker era um gênio intuitivo, de personalidade irascível, com histórico de prisões, internações em sanatórios e duas tentativas de suicídio. Virou um mestre do sax alto após ser humilhado em algumas apresentações, passou a praticar com o instrumento 12 horas por dia. Era viciado em heroína, e, como não podia deixar de ser, a droga o levou à morte prematura, aos 34 anos.



Dizzy viveu longos 75 anos. Foi, junto com Louis Armstrong e Duke Ellington, um dos grandes embaixadores do jazz. Cuidou de ensinar ao mundo o que o bebop queria dizer, trouxe os ritmos latinos para o jazz, viajou pelo mundo inteiro. Sua imagem simpática e bonachona, com as bochechas enormes soprando o trompete, faz parte do inconsciente coletivo, como sinônimo de jazz. Com Parker, fez gravações e apresentações incendiárias. Entraram para a história. Um servindo de contrapeso para o outro: o médico e o monstro, o yin e o yang. Assim deve funcionar a mente humana, pensa ele, o equilíbrio da luta entre o racional e o instintivo, a loucura e a sanidade, o consciente e o inconsciente. Be. Bop. Ele descansa após o dia de trabalho, sente que precisa de uma revolução. Alguém disse que as grandes revoluções são feitas pelos conservadores. Talvez. Se a resposta estiver escrita, está nas partituras, e não nos livros.