sexta-feira, dezembro 22, 2006

2007

Uma ressalva a ser feita: o Natal existe há 2006 anos. O ano-novo, como o conhecemos, pelo calendário gregoriano, há mais de quatro séculos. Daí a dificuldade de se encontrar algo original e relevante a dizer no atual momento: em todo esse tempo, creio que esgotaram-se adjetivos, votos e pensamentos positivos. Obviamente, como menino de mentalidade mediana que sou, não conseguirei fugir da sina de apenas repetir, talvez numa ordem diferente, algo que já foi dito e revisitado e esquecido e relembrado durante esses anos.

Fiquei muito tempo pensando no que desejar para os meus amigos neste momento, além do básico saúde-dinheiro-paz-felicidade-amor. Por fim, resolvi torcer para que todos, transferindo algo que desejo muito para mim, tenham muito tempo livre em 2007.

Tempo livre, como se sabe, é um artigo muito raro nas nossas vidas frenéticas de aspirantes a adultos. Temos que trabalhar, estudar, dirigir, cumprir com obrigações sociais... tantas tarefas que fazem com que as 24 horas do dia muitas vezes pareçam ridiculamente insuficientes. Mais ainda quando pensamos na quantidade de prazeres dos quais temos que abdicar para parecermos cidadãos de respeito. Torço, portanto, para que encontremos tempo livre para nos dedicarmos às nossas famílias, amigos e demais pessoas queridas. Para que consigamos ler bons livros, ouvir sinfonias ou funks pancadão, visitar uma boa exposição de arte. Para que possamos filosofar, pensar no futuro da humanidade, nem que seja para que logo depois concluir com um “sei lá... sei lá... a vida tem sempre razão”. Tempo para dançar, namorar, montar um quebra-cabeças, fumar um charuto. Tempo até para pensarmos no que faríamos se tivéssemos mais tempo, ou no que compraríamos quando finalmente formos premiados na mega-sena. Enfim, tempo para a dita inutilidade, que, no fundo, é o que contribui para que o mundo ainda não tenha se tornado um aborrecimento completo, uma disputa de cachorros correndo atrás do próprio rabo.

Em resumo, divirtam-se em 2007!

terça-feira, novembro 28, 2006

O Procrastinador

A mente do procrastinador é doentia e ágil, muito ágil. Uma vez identificada a tarefa a ser realizada, ela calcula rapidamente, com uma precisão espantosa, quanto tempo será necessário para concluí-la. Depois, ocupa-se com outras tarefas completamente distintas e desconexas, até que soa um alarme avisando que só resta o tempo mínimo anteriormente calculado. E o corpo que se vire em suor, cabelos brancos e neurônios queimados para executar a tal tarefa. Na mente do procrastinador, o subconsciente domina o consciente, o racional é passado para trás.

Este texto é obra da mente de um procrastinador.

quinta-feira, novembro 23, 2006

Chora, Brasil

É de morrer de rir o nível das discussões de política econômica para o próximo mandato presidencial. Ou melhor, seria de morrer de rir se não fosse de chorar, já que as decisões dos sábios de Brasília afetarão diretamente nossas vidas nos próximos anos.

Pois bem. Quando Lula foi eleito presidente, em 2002, sua equipe econômica tinha como missão principal estabilizar o que o próprio PT tinha desestabilizado. Ou seja, combater os efeitos do terremoto ocorrido naquele ano no mercado financeiro, causado pela absoluta falta de confiança dos agentes no então candidato que liderava as pesquisas. A onda especulativa jogou o câmbio para perto dos R$ 4,0 / US$, a inflação para 12,5% ao ano, o spread do C-Bond (o título da dívida externa mais negociado na época) para mais de 2000bps (ou seja, juros anuais 20% acima de um título americano equivalente) e forçou, posteriormente, o Banco Central a levar os juros básicos para 26,5%. A situação, que colocava o país na beira do abismo do calote da dívida soberana, requeria um choque de credibilidade, e este foi dado, em grande parte, por um Banco Central competente e um ministro da fazenda de rara habilidade política, que soube se cercar de uma equipe capaz e resguardá-la dos freqüentes ataques vindos do próprio partido, empresários, mídia e afins.

O desenrolar dessa gestão eficiente fez com que, passados quatro anos e descontadas algumas presepadas, um dólar possa ser comprado por pouco mais de dois reais, a inflação encontre-se ao redor dos 4,0% ao ano, o C-Bond tenha sido totalmente resgatado (bem como quase toda a dívida externa soberana) e a Selic beire os 13,0%, com totais condições de seguir caindo (obviamente não se pode ignorar a “ajudinha” proporcionada pelas condições de liquidez mundiais mais abundantes da história, mas não é o caso tratar delas aqui). Fez também com que o governo federal tivesse condições de pôr em funcionamento uma potente máquina de assistencialismo, que, entre outros motivos e apesar da ação de mensaleiros, sanguessugas, aloprados e outras pragas, garantiu a Lula mais de 60 milhões de votos e mais um mandato de quatro anos.

Passada a farra das eleições (como bem disse Vinícius, “dia de festa é véspera de muita dor”), chegou a hora de definir o que fazer com o Bananão de 2007 em diante. Foi quando alguém assoprou no ouvido do “nosso guia” que, nos quatro anos anteriores, o país simplesmente esquecera-se de crescer. Que tragédia! Façamos, portanto, o país crescer! 5% ao ano parece um bom número. E aí começa o FEBEAPÁ (Festival de Besteiras que Assola o País, para quem ainda não teve a alegria de ler Stanislaw Ponte Preta), versão novo milênio. Primeiro, execremos as políticas “anti-crescimento” (estranhamente, depois de um bom tempo estudando economia, ainda não descobri nenhuma linha de pensamento, de qualquer orientação ideológica, que vise destruir o produto. Vai saber...). Viva o desenvolvimentismo! Bem, para crescer, precisamos investir, o mesmo passarinho disse. Então, o que estamos esperando para investir?! Não tentemos implementar reformas para incentivar a iniciativa privada a fazê-lo, o governo dá conta sozinho, ao menos por enquanto!

OK, mas de onde tirar recursos para os investimentos? Vejamos: a carga tributária já é bastante alta, aumentá-la acabaria por arrochar ainda mais o setor privado. Temos também que manter um superávit primário que, no mínimo, não faça a dívida pública crescer. Mas não podemos cortar os gastos correntes! Seria um disparate, a máquina estatal precisa ser alimentada, como os companheiros vão se virar sem os seus cargos, como acomodar a base aliada, como mexer no Bolsa-Família? Reformar a previdência, também, nem pensar! O que importa se a expectativa de vida sobe sensivelmente e a idade mínima para aposentadoria é mantida? O que importa se gastaremos em breve 8% do PIB com o INSS, e que o número de idosos no país crescerá 4% ao ano no próximo quarto de século*? Não podemos mexer com os aposentados e pensionistas, que, tão generosamente, nos deram seus votos! Conclusão: não temos folga no orçamento para investir. Devemos ser criativos.

E é agora que o Festival começa a esquentar. Criatividade é o forte dos economistas-companheiros. Por que copiar o que dá certo no resto do mundo? Aqui é diferente! Aqui a água não ferve a 100ºC, nem o dia tem 24 horas. Ora, já que o governo não pode economizar, de onde podemos tirar recursos, de bate-pronto, sem pensar muito (pensar dá um trabalho...)? Fácil, uma resposta com quatro letras: F-G-T-S.

O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço foi criado no governo Castello Branco, como forma de “compensar a extinção da estabilidade funcional nas empresas privadas”. Os empregadores contribuem, em contas individuais dos trabalhadores, com 8% do salário bruto. Os recursos do fundo (atualmente da ordem de R$ 170 bilhões) podem, posteriormente, serem sacados sob algumas condições (demissão sem justa causa, etc.), e são regidos por um obscuro Conselho Curador do FGTS (composto por representantes do governo, trabalhadores e empregadores), que, atualmente, os usa para financiar projetos de educação e saneamento. Na prática, é uma poupança compulsória, de difícil acesso e remunerada por juros escandalosamente abaixo dos de mercado (TR + 3%). Dada essa breve explicação, e voltando para a criatividade: hoje o companheiro Mantega anunciou que parte dos rendimentos da arbitragem de juros (com o dinheiro do fundo compra-se títulos que rendem, digamos, a taxa Selic) feita pela Caixa à custa do trabalhador de carteira assinada – estamos falando em até R$ 15 bilhões – será usada para financiamento de projetos de habitação popular. Não bastasse isso, seria injusto supor que, mesmo que esses projetos de fato beneficiem milhares de famílias, o dinheiro será canalizado para empreiteiras-companheiras, que devolvem parte do pagamento para outros companheiros do partido? A julgar pelo histórico recente, acredito que não.

O exemplo citado acima, creio, será apenas o primeiro de uma longa série. Enquanto puder, o PT preferirá não arriscar sua popularidade e seu capital político com reformas estruturais, tentando impulsionar o crescimento por meio de investimentos estatais com recursos obtidos por meio desses tipos de taxação disfarçada. Vão argumentar que “as elite” devem financiar benesses para os mais pobres. Mas acontece que “as elite” de verdade não dão por falta de, por exemplo, de 8% dos seus rendimentos. Esses 8% certamente fazem mais diferença para a verdadeira classe atualmente desfavorecida no Brasil, a dos trabalhadores de classe média-baixa, assalariados que não acessam os recursos do assistencialismo federal.

Deixando um pouco de lado o atentado aos aspectos essencialmente econômicos: há mais de 2.300 anos, Aristóteles ponderava que a comunidade política ideal é aquela onde a classe média é maior e mais respeitável do que as classes alta e baixa juntas. O governo está nos colocando no caminho exatamente oposto. E lá vem, de carona com o trenó do Papai Noel, o pacote fiscal de dezembro. É demais pedir um pouco de racionalidade? Talvez não, mas esperar por ela nesse ambiente é mais ingênuo do que contar com a chegada do piloto do tal trenó em nossas respectivas casas. Chora, Brasil.

* Essa estimativa é cortesia do brilhante Fabio Giambiagi, em artigo para a Folha de S. Paulo de 23/11.

quarta-feira, novembro 15, 2006

Piromania

Engraçado, quando eu acendi o isqueiro e aproximei da primeira placa de compensado, achei que aquilo não ia dar em nada. O isqueirinho, chocho, daqueles que se compra em mãozada com três unidades, parecia heróico ao acender um simples cigarro, não teria capacidade sequer de sujar de fuligem uma placa de mais de três metros de área, ainda por cima meio úmida. Mas assim que o fogo lambeu a madeira eu me animei, a chama parecia que ia “pegar”, e eu, inconsciente, mantive apertado o botão que libera a saída de gás. Quando soltei o tal botão, o fogo já tomava conta de uma área do tamanho de uma caixa de fósforos, bonito, estalando – aquela porcaria de compensado, uma maçaroca de retalhos de madeira, papelão e cola, queima que nem jornal, que saudade de fazer balão-galinha! No que saí andando e olhei por cima do ombro, a fumaça já era aparente. Dei uns cinquenta passos e virei para olhar novamente, que beleza!, o fogo havia subido e estava do jeito que o diabo gosta. Quando eu cheguei em casa, depois de tomar banho e comer, liguei a televisão e vi o plantão de notícias. Três carros de bombeiro, daqueles grandes, aquelas escadas Magirus esticadas, um espetáculo! Só consegui dormir, eufórico, seis horas depois, quando o plantão voltou, avisando que o fogo estava finalmente sob controle, não havia vitmas. Estava em paz com o meu Nero interior.

quarta-feira, novembro 01, 2006

#1 - How Blue Can You Get? : Classic Live Performances, 1964-1994

Os melhores álbuns ao vivo são aqueles que trazem um show completo, com algo especial e diferente de uma gravação de estúdio (nesse sentido, B.B. King gravou pelo menos dois discos históricos, “Live in Cook County Jail” e “Live at the Regal”). Isso faz com que uma coletânea de gravações ao vivo pareça um pouco estranha: fazem falta as conexões entre as músicas do repertório, as falas dos músicos nos intervalos, as interações com a platéia; enfim, falta passar ao ouvinte a impressão de que é possível voltar no tempo e se sentir protagonista de um momento memorável.

Entretanto, B.B. King, de qualquer maneira que seja apresentado, é uma lenda da música e um brilhante entertainer, o que faz com que a audição de “How Blue Can You Get?” seja fácil e prazerosa. Aqui está uma amostra ampla de quase toda a longa carreira de B.B. King, das lendárias apresentações dos anos de 1960 e 1970 até espetáculos mais recentes (e bem mais burocráticos). Vale como amostra, para despertar o interesse pelas performances incendiárias que fizeram com que um menino do Mississippi se tornasse, com justiça, o rei do Blues.

Lá, como cá

A última edição da "Rolling Stone" americana estampa na capa: o pior congresso da história. Boa sugestão de pauta para a recém lançada versão brasileira de um dos maiores símbolos da cultura pop. Assunto não vai faltar...

quinta-feira, outubro 05, 2006

Apelando

Num lapso desesperador de criatividade, resolvi apelar. Não, não vou escrever descendo a lenha no Lula. Resolvi imitar descaradamente o Nick Hornby (não que ele seja um exemplo de lapso de criatividade, muito pelo contrário) e começar a comentar a minha coleção de discos. Para quem não sabe, eu gasto muito tempo cuidando dela, o que inclui manter uma base de dados atualizada com todas as compras, incluindo as faixas de cada disco, compositor, tempo, e por aí vai. Uma das vantagens da base de dados é que consigo saber a ordem cronológica das compras, o que vai ajudar a traçar as origens do meu (des)gosto musical e contar algumas histórias.

Provavelmente esse "projeto" não vai terminar. Tenho uns 1300 discos para comentar, o que faria com que eu levasse mais de três anos caso escrevesse, religiosamente, um texto por dia. Muita coisa pode acontecer em três anos: sendo otimista, minha veia criativa pode voltar e eu volto a escrever sobre outros temas, não necessariamente mais relevantes. Pode ser que, em mais algum tempo, eu emburreça de vez por passar boa parte do meu dia olhando para planilhas, e nem comentar sobre música eu consiga mais. "Every picture tells a story", diz a canção. Enfim, aqui começa o projeto "every disc tells a story". Divirtam-se!

sábado, junho 10, 2006

Joga Bola, Jogador

Começou. No próximo mês, não se falará mais de outra coisa. Por onde quer que se passe, os aparelhos de televisão estarão sintonizados em jogos ao vivo, vídeo-tapes, mesas de discussão, bastidores das concentrações. Nesse intervalo, o futebol fará quase todos os outros assuntos parecerem impertinentes e desinteressantes. Enfim, chegou a Copa do Mundo.

É impressionante notar como nós, brasileiros, pautamos as nossas vidas pelos mundiais de futebol. Eu não consigo me lembrar onde almocei anteontem, mas posso descrever perfeitamente as situações em que me encontrava em todos os jogos do Brasil nos últimos três mundiais. Criamos um novo calendário, onde os anos são apenas divisões secundárias, bem menos importantes. O que vale mesmo é o ano de Copa do Mundo, os demais se resumem, grosso modo, a esperar, esperar, esperar.

Em ano de Copa do Mundo, ser brasileiro vira, subitamente, motivo de orgulho. É a nossa vingança: podemos ter violência, corrupção e dívida pública indexada e de prazo muito curto, mas no futebol mandamos nós. Ingleses, italianos, alemães e (pfffffff) americanos são apenas meros coadjuvantes; quem manja mesmo de bola, como diria o Marcelo Rubens Paiva, é tupiniquim subdesenvolvido. E, neste momento, não há distinção de classes no Brasil. Seja universitário, executivo, gari ou presidiário, todos procurarão esquecer suas frustrações e encarnar em um dos 11 que estarão vestindo a camisa amarela. Para alguns, o futebol é a única válvula de escape das humilhações do dia a dia, e por isso não é tão difícil explicar alguns episódios de violência extrema que tem envergonhado tão belo esporte.

E o futebol não pode ser descrito de outra maneira se não com adjetivos exagerados. É um esporte (ou modalidade esportiva, para os puristas) absolutamente imprevisível: está para chegar o dia em que vai aparecer um matemático ou um computador capaz de modelar um espaço de 110 m x 80 m, onde 22 jogadores, com seus potenciais, limitações, criatividades, egos e idiossincrasias, tentam, com os pés, encaixar uma esfera de 69 cm de circunferência em um gol de sete metros de comprimento por 2,4 m de altura – uma enormidade paradoxal, dada a dificuldade vista na maior parte do tempo em conseguir tal feito. Tudo isso dá margem para (eu avisei que os adjetivos têm que ser exagerados) lances mágicos, aparentemente impossíveis, verdadeiras obras de arte que, como uma boa música ou um quadro expressivo, podem tanto ser frutos de treino e obstinação quanto explosões criativas e absolutamente originais, ou, o que é mais comum no futebol moderno, uma combinação harmoniosa desses dois fatores.

Muito pode ser escrito sobre futebol, e é difícil fazê-lo sem soar repetitivo. Minha contribuição fica por aqui. Em minutos começa Inglaterra x Paraguai. Torcerei pelos hermanos do outro lado da Ponte da Amizade e para que a Copa se desenrole numa final épica entre Brasil x Argentina. É delírio demais? O futebol e a tabela do mundial permitem isso. Vai, Brasil!!!

segunda-feira, maio 15, 2006

Sen, ele mesmo

Para compensar a bagunça e a falta de organização de idéias do texto anterior, um pouco da lucidez do professor Sen, bem oportuna neste momento. Aproveitem!

"Vivemos em um mundo de opulência sem precedentes, de um tipo que teria sido difícil até mesmo imaginar um ou dois séculos atrás. Também tem havido mudanças notáveis para além da esfera econômica. O século XX estabeleceu o regime democrático e participativo como o modelo preeminente de organização política. Os conceitos de direitos humanos e liberdade política hoje são parte da retórica prevalecente. As pessoas vivem em média muito mais tempo do que no passado. Além disso, as diferentes regiões do globo estão agora mais estreitamente ligadas do que jamais estiveram, não só nos campos da troca, do comércio e das comunicações, mas também quanto a idéias e ideais interativos.

Entretanto, vivemos igualmente em um mundo de privação, destituição e opressão extraordinárias. Existem problemas novos convivendo com antigos – a persistência da pobreza e de necessidades essenciais não satisfeitas, fomes coletivas e fome crônica muito disseminadas, violação das liberdades políticas elementares e de liberdades formais básicas, ampla negligência diante dos interesses e da condição de agente das mulheres e ameaças cada vez mais graves ao nosso meio ambiente e à sustentabilidade da nossa vida econômica e social. Muitas dessas privações podem ser encontradas, sob uma ou outra forma, tanto em países ricos como em países pobres.

Superar esses problemas é uma parte central do processo de desenvolvimento... ... precisamos reconhecer o papel das diferentes formas de liberdade no combate a esses males. De fato, a condição de agente dos indivíduos é, em última análise, central para lidar com essas privações. Por outro lado, a condição de agente de cada um é inescapavelmente restrita e limitada pelas oportunidades sociais, políticas e econômicas de que dispomos. Existe uma acentuada complementaridade entre a condição de agente individual e as disposições sociais: é importante o reconhecimento simultâneo da centralidade da liberdade individual e da força das influências sociais sobre o grau e o alcance da liberdade individual. Para combater o problema que enfrentamos, temos de considerar a liberdade individual um comprometimento social.

A expansão da liberdade é vista, por essa abordagem, como o principal fim e o principal meio do desenvolvimento. O desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de agente. A eliminação de privações de liberdades substanciais é constitutiva do desenvolvimento. Porém, para uma compreensão mais plena da relação entre desenvolvimento e liberdade, precisamos ir além desse reconhecimento básico (ainda que crucial). A importância intrínseca da liberdade humana em geral, como o objetivo supremo do desenvolvimento, é acentuadamente suplementada pela eficácia instrumental de liberdades específicas na promoção de liberdades de outros tipos. Os encadeamentos entre diferentes formas de liberdade são empíricos e casuais, e não constitutivos e compositivos. Por exemplo, há fortes indícios de que as liberdades econômicas e políticas se reforçam mutuamente, em vez de serem contrárias umas às outras (como às vezes se pensa). Analogamente, oportunidades sociais de educação e assistência médica, que podem requerer a ação pública, complementam oportunidades individuais de participação econômica e política e também favorecem nossas iniciativas para vencer privações.

Trecho do prefácio de “Desenvolvimento como liberdade”. Companhia das Letras, 2004.

Envelhecendo na cidade

Nasci em São Paulo, há exatos 26 anos. Sempre vivi na periferia. Toda a minha vida, até entrar na faculdade, foi passada entre Campo Limpo e Capão Redondo – nomes que, de forma lamentável, evocam imediatamente lembranças das páginas policiais dos jornais. Meus amigos, do colégio e do primeiro trabalho, moravam em lugares de ainda pior reputação – Jardim Angela, Valo Velho, Jardim São Luís, Vaz de Lima...

Embora a violência urbana sempre tenha sido parte do meu cotidiano, até hoje nunca me abalei com ela. Nunca abri mão da minha liberdade, nunca deixei de ir ao colégio, faculdade ou trabalho com medo de alguma ação criminosa, mesmo muitas vezes tendo que voltar para casa em horários esdrúxulos e por transporte público. Freqüentava a casa dos amigos acima mencionados, sem medo algum. Simplesmente aprendi a lidar com a violência, ponto, e não deixá-la se tornar mais importante do que todas as outras atividades da minha vida.

Assim, consegui aprender a admirar São Paulo, a gostar de sua pluralidade, dos seus lugares, das suas pessoas... Nos últimos tempos, depois de conhecer alguma coisa do mundo, estava chegando à conclusão de que era aqui que eu gostaria de trabalhar, criar os meus possíveis filhos e envelhecer. Seria a minha forma de agradecer à cidade que acolheu meus avós, quando fugiram de Portugal; o meu pai, quando veio de Minas para concretizar suas ambições; que foi generosa comigo a ponto de eu conseguir estudar numa das melhores universidades do país sem desembolsar um centavo; que me formou homem e profissional; a cidade onde eu conheci pessoas absolutamente fantásticas, que tanto me trazem alegria e conforto.

Hoje reconsiderei tudo isso, e até agora não concluí nada em definitivo. Ou melhor, concluí. Concluí, primeiro, que quem lança boatos é um terrorista, com todas as letras, já que espalha tanto pânico quanto quem atira uma bomba. Pelos e-mails que circulavam à tarde, São Paulo estaria pior do que Fallujah. Não estava. Era tudo invenção, e, creio que por isso, milhões de paulistanos foram para a casa mais cedo, apavorados. Mas é claro que isso só aconteceu porque a estratégia de comunicação adotada pelas autoridades foi a pior possível. Ninguém sabia o que acontecia até por volta das 16h30, quando ouvi no carro a primeira entrevista de um comandante da Polícia Militar.

As autoridades responsáveis precisam tomar medidas enérgicas. Custe o que custar. Segurança pública é um preceito básico de qualquer sociedade minimamente desenvolvida – e é inaceitável que uma cidade de mais de 10 milhões de habitantes vire refém de um bando de marginais. O impacto de mais alguns dias como hoje, sob todos os prismas (econômico, social, psicológico, e por aí vai) não pode ser desprezado. O Brasil deveria tomar esses acontecimentos como o seu 11 de Setembro, e aproveitar para reformular toda a sua política de segurança pública. Bons exemplos não faltam em todo o mundo - não é preciso inovar, basta copiar! Não pode ser tão difícil. Também é inaceitável o fato de brigas políticas serem levadas em conta quando o que está em jogo é a tranqüilidade dos cidadãos: se a presença de tropas federais for necessária, elas devem ser convocadas – por mais que isso certamente seja usado com propósitos eleitoreiros, posteriormente (me enoja só o pensamento de ver Lula na TV dizendo que “salvou a São Paulo do PSDB da barbárie”).

Aliás, creio que as ações dos últimos dias terão um impacto nas intenções de voto para Geraldo Alckmin – maior do que a possível descoberta de contas suspeitas no exterior em nome do presidente Lula. Não importa se esse juízo de valor é certou ou errado; o fato é que Alckmin provavelmente pagará por ter varrido para debaixo do tapete um problema crucial. Como um amigo me disse hoje, de forma muito consciente, nada do que estamos vendo deveria ser surpresa, já que a situação geral da segurança pública não mudou de um dia para o outro – apenas levantaram um pouco o tal tapete.

Amartya Sen, o genial economista indiano, definiu desenvolvimento como liberdade, simples assim. Também por essa medida, nosso Brasil vai muito mal das pernas. Hoje eu gostaria de estar celebrando meu aniversário com os amigos, sem dor de cabeça alguma. Estou em casa, contra a minha vontade – por mais que eu não sinta medo, tenho que respeitar a preocupação dos meus pais, que é perfeitamente legítima. O Estado para o qual eu contribuo, em forma de impostos, com uma fatia da minha renda que deveria me garantir serviços públicos comparáveis aos do primeiro mundo, me entrega uma segurança pública do nível do Sudão. O problema é muito mais complexo do que se pensa, e sua solução certamente passa por uma completa racionalização de como o Estado é organizado. Combatendo um déficit da previdência pública de absurdos 8% do PIB teríamos mais dinheiro para investir em segurança. Eliminando cargos públicos inúteis, também. Criando um sistema transparente de licitações e compras do governo, idem. E por aí vai. Este ano teremos eleições presidenciais, estaduais e do legislativo. Todo cidadão deveria dar seu voto para quem privilegia esse tipo de racionalidade.

No tempo que gastei escrevendo as linhas acima, ao menos uma conclusão terrível e inevitável substituiu a ausência de conclusões de alguns parágrafos passados: entre os dois candidatos com reais chances de assumir a presidência no próximo ano, um provavelmente será provado como o chefe da quadrilha que promoveu o maior assalto já visto neste país – e dinheiro desviado em esquemas de corrupção, adivinhe!, também pode ser usado para melhorar a segurança y otras cositas más. O outro, fazendo parte há doze anos do governo de São Paulo, fracassou retumbantemente na tarefa básica e essencial de garantir segurança e, por conseqüência, liberdade aos seus cidadãos. Trata-se, portanto, de escolher o menos pior. E é deprimente, muito deprimente, não ter a menor convicção de que essa escolha contribuirá para que, daqui a quatro anos, eu tenha plena liberdade para comemorar aqui os meus 30 anos, às vésperas do Mundial da África do Sul e com os meus possíveis filhos mencionados acima. A conclusão é egoísta, mas desse particular pode-se facilmente passar para uma triste generalização.

Em se tratando de Brasil, são preocupantes os momentos em que a seleção de futebol fica em segundo plano – mais ainda em ano de Copa. Hoje toda a imprensa deveria estar destacando e comentando a convocação do Parreira. E, no lugar disso, o que se vê em qualquer fonte de notícias é o horror, o horror...

quarta-feira, maio 03, 2006

Sai pra lá, encosto!















Pé de coelho, ramo de arruda, patuá, santinho de Santo Expedito benzido pelo bispo. Carranca, figa de Guiné, potinho de sal grosso, pimenta dedo de moça. Dente de porco do mato, máscara de couro de tamanduá. Foto do Tostão comemorando o quarto gol na final contra a Itália. Seleção de mandingas escalada e devidamente alocada em cima da televisão; ele jogou o chinelo num canto, abriu a cerveja geladíssima, se afundou no sofá, meteu um sorriso no rosto e a partida começou.

sábado, abril 08, 2006

Celebração

Conclamo todos os cidadãos! Que saiam de suas casas imediatamente, com suas roupas mais coloridas e vistosas. Que deixem as crianças à vontade, que se percam e depois se encontrem. Que tirem quanta água conseguirem dos poços, quero baldes e mais baldes passando de mão em mão até a grande praça, onde serão despejados. Que se forme uma imensa poça de lama, e que lá joguemos todos os nossos desafetos – lá certamente encontrarão as crianças, que não os levarão a sério, e é disso que eles precisam. Que as tavernas abram suas portas para aqueles que sempre delas foram expulsos: os mendigos, os sujeitos de reconhecida má índole, as donzelas formosas, os leprosos. Que essas mesmas donzelas formosas percam os pudores, e saiam às ruas com o busto à mostra – e pobre do bruto homem que ousar tocá-las; será penalizado não apenas com um banho de lama, mas será também impiedosamente chibatado pelos mais cruéis dos carrascos. Que os cachorros e pássaros sejam soltos, deixem estes últimos também fazerem a sua festa de liberdade; os cachorros são mais tolos, mesmo soltos continuarão a seguir os passos dos humanos.

Que soem os alaúdes, clarinetes e trompas! Que os músicos entreguem suas almas e produzam as mais intrincadas melodias e harmonias. Caçadores, corram! Adentrem a floresta com suas lanças, flechas e laços. Tragam as mais finas carnes de caça: javalis, cervos e tudo mais o que encontrarem. Lenhadores, acompanhem, e tragam muita madeira, de preferência aquelas que, quando queimadas, exalam finos perfumes. Usurários, nesta semana não se cobram juros, seria uma indecência! Todos os recursos devem ser alocados para a celebração. Que partam barcos rumo ao oriente distante, e que de lá voltem com canela, açafrão, faquires, tecidos de seda, exilados, animais exóticos. Os artesãos, que parem de gastar o tempo com produtos que possam ser vendidos, joguem fora esse pragmatismo e liberem o senso artístico, todos o têm! Talhem imagens de deusas nas cercas de suas casas, pinte sua família ou os barcos que partem.

Que os vis e torpes sejam contagiados por essa alegria, e terminem as celebrações, se não purificados, ao menos não tão mais vis e torpes. Que os generosos, de espírito nobre, saiam ainda mais enobrecidos. Que as moças solteiras consigam maridos fiéis e amorosos, mas não estúpidos e pacatos. Mestres, deixem de ensinar tolices disfarçadas pela erudição! Permitam que todo o conhecimento que vocês acumularam flua em forma de histórias fantásticas, que carreguem em sua simplicidade toda a sabedoria acumulada por quem entrou em nossa frente na fila da história.

Todos, sobretudo, celebrem! Celebrem a vida, em todas as suas facetas, não só as evidentemente boas, mas também as amargas, que se provam necessárias: fazem com que vivamos segundo o que postulou o grande humanista, que disse que o riso diário é bom, o riso habitual é insosso e o riso constante é insano. Deixem o siso de lado por um tempo, preocupem-se apenas em celebrar, em rir do próximo e de si mesmo. Se não tiverem motivos para celebrarem por si próprios, celebrem pelos vizinhos, amigos, familiares... Saiam de suas casas, saiam! A alegria é um dever cívico nos próximos dias, porque o tempo só tem nos trazido prosperidade, e esta senhora nunca está feliz quando não acompanhada de gozo e, por que não repetir?, celebração!

domingo, janeiro 15, 2006

Auf Wiedersehen, Hein Harrer

Hoje li na “Veja” que o lendário alpinista austríaco Heinrich Harrer faleceu no último dia 7, aos 93 anos. A aventura e a experiência de vida de Harrer, narradas com maestria no livro “Sete anos no Tibet” (sem dúvida um dos melhores relatos autobiográficos que já li) – e posteriormente passadas para a telona no filme de mesmo nome, filmado nos Andes argentinos e com (mulheres, suspirem) Brad Pitt no papel principal – parecem invenção de um ficcionista delirante, além de constituírem um painel bastante interessante de um período agitadíssimo da história do século passado.

Harrer estava participando de expedições de escalada no Himalaia em 1939, quando estourou a Segunda Guerra Mundial. Foi capturado no Paquistão por um batalhão do exército inglês e feito prisioneiro de guerra. Junto com um amigo, conseguiu empreender uma fuga fantástica do campo de prisioneiros e rumou para o Tibet, enfrentando no caminho (de 21 meses!) provações inacreditáveis. No Tibet foi inicialmente visto como um animal exótico: imagine dois austríacos barbudos chegando a pé no que era um reino totalmente isolado.

Porém, com humildade e inteligência, os dois amigos não demoraram muito para se integrarem à sociedade tibetana. Usando de seus conhecimentos técnicos (se não me engano os dois haviam se formado engenheiros), fizeram diversas obras para melhorar a infra-estrutura da capital Lhasa. Aprenderam a língua local e, para sua surpresa, Harrer foi convocado para ser tutor do atual Dalai Lama, na época uma criança curiosa de seus 7 anos.

O alpinista foi incumbido de apresentar ao jovem Tenzin Gyatso a cultura ocidental, e dessa maneira podemos dizer que ele foi um pioneiro da globalização – sua influência fez inclusive com que o jovem lama, míope, fosse o primeiro a usar óculos, até então um tabu para a religião budista. Creio que os ensinamentos de Harrer foram decisivos para que, posteriormente, o Dalai Lama se tornasse uma figura popular e reconhecida no mundo ocidental, sempre lutando pela libertação do Tibet e sendo contemplado com um Nobel da paz por essa causa.

A fantástica história de Harrer termina de maneira triste em 1950, com a brutal invasão do Tibet pelo exército da China maoísta. Harrer voltou para a Áustria e, pelo o que acabei de ler na Wikipedia, continuou sendo um explorador e esportista inquieto até o fim dos seus dias. Desnecessário dizer que recomendo com todas as letras a leitura do livro mencionado acima. A única contra-indicação é que a obra pode fazer a sua vida parecer terrivelmente desinteressante.