quinta-feira, novembro 23, 2006

Chora, Brasil

É de morrer de rir o nível das discussões de política econômica para o próximo mandato presidencial. Ou melhor, seria de morrer de rir se não fosse de chorar, já que as decisões dos sábios de Brasília afetarão diretamente nossas vidas nos próximos anos.

Pois bem. Quando Lula foi eleito presidente, em 2002, sua equipe econômica tinha como missão principal estabilizar o que o próprio PT tinha desestabilizado. Ou seja, combater os efeitos do terremoto ocorrido naquele ano no mercado financeiro, causado pela absoluta falta de confiança dos agentes no então candidato que liderava as pesquisas. A onda especulativa jogou o câmbio para perto dos R$ 4,0 / US$, a inflação para 12,5% ao ano, o spread do C-Bond (o título da dívida externa mais negociado na época) para mais de 2000bps (ou seja, juros anuais 20% acima de um título americano equivalente) e forçou, posteriormente, o Banco Central a levar os juros básicos para 26,5%. A situação, que colocava o país na beira do abismo do calote da dívida soberana, requeria um choque de credibilidade, e este foi dado, em grande parte, por um Banco Central competente e um ministro da fazenda de rara habilidade política, que soube se cercar de uma equipe capaz e resguardá-la dos freqüentes ataques vindos do próprio partido, empresários, mídia e afins.

O desenrolar dessa gestão eficiente fez com que, passados quatro anos e descontadas algumas presepadas, um dólar possa ser comprado por pouco mais de dois reais, a inflação encontre-se ao redor dos 4,0% ao ano, o C-Bond tenha sido totalmente resgatado (bem como quase toda a dívida externa soberana) e a Selic beire os 13,0%, com totais condições de seguir caindo (obviamente não se pode ignorar a “ajudinha” proporcionada pelas condições de liquidez mundiais mais abundantes da história, mas não é o caso tratar delas aqui). Fez também com que o governo federal tivesse condições de pôr em funcionamento uma potente máquina de assistencialismo, que, entre outros motivos e apesar da ação de mensaleiros, sanguessugas, aloprados e outras pragas, garantiu a Lula mais de 60 milhões de votos e mais um mandato de quatro anos.

Passada a farra das eleições (como bem disse Vinícius, “dia de festa é véspera de muita dor”), chegou a hora de definir o que fazer com o Bananão de 2007 em diante. Foi quando alguém assoprou no ouvido do “nosso guia” que, nos quatro anos anteriores, o país simplesmente esquecera-se de crescer. Que tragédia! Façamos, portanto, o país crescer! 5% ao ano parece um bom número. E aí começa o FEBEAPÁ (Festival de Besteiras que Assola o País, para quem ainda não teve a alegria de ler Stanislaw Ponte Preta), versão novo milênio. Primeiro, execremos as políticas “anti-crescimento” (estranhamente, depois de um bom tempo estudando economia, ainda não descobri nenhuma linha de pensamento, de qualquer orientação ideológica, que vise destruir o produto. Vai saber...). Viva o desenvolvimentismo! Bem, para crescer, precisamos investir, o mesmo passarinho disse. Então, o que estamos esperando para investir?! Não tentemos implementar reformas para incentivar a iniciativa privada a fazê-lo, o governo dá conta sozinho, ao menos por enquanto!

OK, mas de onde tirar recursos para os investimentos? Vejamos: a carga tributária já é bastante alta, aumentá-la acabaria por arrochar ainda mais o setor privado. Temos também que manter um superávit primário que, no mínimo, não faça a dívida pública crescer. Mas não podemos cortar os gastos correntes! Seria um disparate, a máquina estatal precisa ser alimentada, como os companheiros vão se virar sem os seus cargos, como acomodar a base aliada, como mexer no Bolsa-Família? Reformar a previdência, também, nem pensar! O que importa se a expectativa de vida sobe sensivelmente e a idade mínima para aposentadoria é mantida? O que importa se gastaremos em breve 8% do PIB com o INSS, e que o número de idosos no país crescerá 4% ao ano no próximo quarto de século*? Não podemos mexer com os aposentados e pensionistas, que, tão generosamente, nos deram seus votos! Conclusão: não temos folga no orçamento para investir. Devemos ser criativos.

E é agora que o Festival começa a esquentar. Criatividade é o forte dos economistas-companheiros. Por que copiar o que dá certo no resto do mundo? Aqui é diferente! Aqui a água não ferve a 100ºC, nem o dia tem 24 horas. Ora, já que o governo não pode economizar, de onde podemos tirar recursos, de bate-pronto, sem pensar muito (pensar dá um trabalho...)? Fácil, uma resposta com quatro letras: F-G-T-S.

O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço foi criado no governo Castello Branco, como forma de “compensar a extinção da estabilidade funcional nas empresas privadas”. Os empregadores contribuem, em contas individuais dos trabalhadores, com 8% do salário bruto. Os recursos do fundo (atualmente da ordem de R$ 170 bilhões) podem, posteriormente, serem sacados sob algumas condições (demissão sem justa causa, etc.), e são regidos por um obscuro Conselho Curador do FGTS (composto por representantes do governo, trabalhadores e empregadores), que, atualmente, os usa para financiar projetos de educação e saneamento. Na prática, é uma poupança compulsória, de difícil acesso e remunerada por juros escandalosamente abaixo dos de mercado (TR + 3%). Dada essa breve explicação, e voltando para a criatividade: hoje o companheiro Mantega anunciou que parte dos rendimentos da arbitragem de juros (com o dinheiro do fundo compra-se títulos que rendem, digamos, a taxa Selic) feita pela Caixa à custa do trabalhador de carteira assinada – estamos falando em até R$ 15 bilhões – será usada para financiamento de projetos de habitação popular. Não bastasse isso, seria injusto supor que, mesmo que esses projetos de fato beneficiem milhares de famílias, o dinheiro será canalizado para empreiteiras-companheiras, que devolvem parte do pagamento para outros companheiros do partido? A julgar pelo histórico recente, acredito que não.

O exemplo citado acima, creio, será apenas o primeiro de uma longa série. Enquanto puder, o PT preferirá não arriscar sua popularidade e seu capital político com reformas estruturais, tentando impulsionar o crescimento por meio de investimentos estatais com recursos obtidos por meio desses tipos de taxação disfarçada. Vão argumentar que “as elite” devem financiar benesses para os mais pobres. Mas acontece que “as elite” de verdade não dão por falta de, por exemplo, de 8% dos seus rendimentos. Esses 8% certamente fazem mais diferença para a verdadeira classe atualmente desfavorecida no Brasil, a dos trabalhadores de classe média-baixa, assalariados que não acessam os recursos do assistencialismo federal.

Deixando um pouco de lado o atentado aos aspectos essencialmente econômicos: há mais de 2.300 anos, Aristóteles ponderava que a comunidade política ideal é aquela onde a classe média é maior e mais respeitável do que as classes alta e baixa juntas. O governo está nos colocando no caminho exatamente oposto. E lá vem, de carona com o trenó do Papai Noel, o pacote fiscal de dezembro. É demais pedir um pouco de racionalidade? Talvez não, mas esperar por ela nesse ambiente é mais ingênuo do que contar com a chegada do piloto do tal trenó em nossas respectivas casas. Chora, Brasil.

* Essa estimativa é cortesia do brilhante Fabio Giambiagi, em artigo para a Folha de S. Paulo de 23/11.

Um comentário:

Anônimo disse...

Você acha que só o PT não quer arriscar a popularidade e capital político para reformas estruturais? Não vi nenhuma reforma estrutural em 12 anos de PSDB/PFL em SP...
Desde as últimas eleições, não acredito mais que o problema seja a orientação ideológica do partido no governo, mas a própria estrutura vigente...