segunda-feira, maio 15, 2006

Sen, ele mesmo

Para compensar a bagunça e a falta de organização de idéias do texto anterior, um pouco da lucidez do professor Sen, bem oportuna neste momento. Aproveitem!

"Vivemos em um mundo de opulência sem precedentes, de um tipo que teria sido difícil até mesmo imaginar um ou dois séculos atrás. Também tem havido mudanças notáveis para além da esfera econômica. O século XX estabeleceu o regime democrático e participativo como o modelo preeminente de organização política. Os conceitos de direitos humanos e liberdade política hoje são parte da retórica prevalecente. As pessoas vivem em média muito mais tempo do que no passado. Além disso, as diferentes regiões do globo estão agora mais estreitamente ligadas do que jamais estiveram, não só nos campos da troca, do comércio e das comunicações, mas também quanto a idéias e ideais interativos.

Entretanto, vivemos igualmente em um mundo de privação, destituição e opressão extraordinárias. Existem problemas novos convivendo com antigos – a persistência da pobreza e de necessidades essenciais não satisfeitas, fomes coletivas e fome crônica muito disseminadas, violação das liberdades políticas elementares e de liberdades formais básicas, ampla negligência diante dos interesses e da condição de agente das mulheres e ameaças cada vez mais graves ao nosso meio ambiente e à sustentabilidade da nossa vida econômica e social. Muitas dessas privações podem ser encontradas, sob uma ou outra forma, tanto em países ricos como em países pobres.

Superar esses problemas é uma parte central do processo de desenvolvimento... ... precisamos reconhecer o papel das diferentes formas de liberdade no combate a esses males. De fato, a condição de agente dos indivíduos é, em última análise, central para lidar com essas privações. Por outro lado, a condição de agente de cada um é inescapavelmente restrita e limitada pelas oportunidades sociais, políticas e econômicas de que dispomos. Existe uma acentuada complementaridade entre a condição de agente individual e as disposições sociais: é importante o reconhecimento simultâneo da centralidade da liberdade individual e da força das influências sociais sobre o grau e o alcance da liberdade individual. Para combater o problema que enfrentamos, temos de considerar a liberdade individual um comprometimento social.

A expansão da liberdade é vista, por essa abordagem, como o principal fim e o principal meio do desenvolvimento. O desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de agente. A eliminação de privações de liberdades substanciais é constitutiva do desenvolvimento. Porém, para uma compreensão mais plena da relação entre desenvolvimento e liberdade, precisamos ir além desse reconhecimento básico (ainda que crucial). A importância intrínseca da liberdade humana em geral, como o objetivo supremo do desenvolvimento, é acentuadamente suplementada pela eficácia instrumental de liberdades específicas na promoção de liberdades de outros tipos. Os encadeamentos entre diferentes formas de liberdade são empíricos e casuais, e não constitutivos e compositivos. Por exemplo, há fortes indícios de que as liberdades econômicas e políticas se reforçam mutuamente, em vez de serem contrárias umas às outras (como às vezes se pensa). Analogamente, oportunidades sociais de educação e assistência médica, que podem requerer a ação pública, complementam oportunidades individuais de participação econômica e política e também favorecem nossas iniciativas para vencer privações.

Trecho do prefácio de “Desenvolvimento como liberdade”. Companhia das Letras, 2004.

Envelhecendo na cidade

Nasci em São Paulo, há exatos 26 anos. Sempre vivi na periferia. Toda a minha vida, até entrar na faculdade, foi passada entre Campo Limpo e Capão Redondo – nomes que, de forma lamentável, evocam imediatamente lembranças das páginas policiais dos jornais. Meus amigos, do colégio e do primeiro trabalho, moravam em lugares de ainda pior reputação – Jardim Angela, Valo Velho, Jardim São Luís, Vaz de Lima...

Embora a violência urbana sempre tenha sido parte do meu cotidiano, até hoje nunca me abalei com ela. Nunca abri mão da minha liberdade, nunca deixei de ir ao colégio, faculdade ou trabalho com medo de alguma ação criminosa, mesmo muitas vezes tendo que voltar para casa em horários esdrúxulos e por transporte público. Freqüentava a casa dos amigos acima mencionados, sem medo algum. Simplesmente aprendi a lidar com a violência, ponto, e não deixá-la se tornar mais importante do que todas as outras atividades da minha vida.

Assim, consegui aprender a admirar São Paulo, a gostar de sua pluralidade, dos seus lugares, das suas pessoas... Nos últimos tempos, depois de conhecer alguma coisa do mundo, estava chegando à conclusão de que era aqui que eu gostaria de trabalhar, criar os meus possíveis filhos e envelhecer. Seria a minha forma de agradecer à cidade que acolheu meus avós, quando fugiram de Portugal; o meu pai, quando veio de Minas para concretizar suas ambições; que foi generosa comigo a ponto de eu conseguir estudar numa das melhores universidades do país sem desembolsar um centavo; que me formou homem e profissional; a cidade onde eu conheci pessoas absolutamente fantásticas, que tanto me trazem alegria e conforto.

Hoje reconsiderei tudo isso, e até agora não concluí nada em definitivo. Ou melhor, concluí. Concluí, primeiro, que quem lança boatos é um terrorista, com todas as letras, já que espalha tanto pânico quanto quem atira uma bomba. Pelos e-mails que circulavam à tarde, São Paulo estaria pior do que Fallujah. Não estava. Era tudo invenção, e, creio que por isso, milhões de paulistanos foram para a casa mais cedo, apavorados. Mas é claro que isso só aconteceu porque a estratégia de comunicação adotada pelas autoridades foi a pior possível. Ninguém sabia o que acontecia até por volta das 16h30, quando ouvi no carro a primeira entrevista de um comandante da Polícia Militar.

As autoridades responsáveis precisam tomar medidas enérgicas. Custe o que custar. Segurança pública é um preceito básico de qualquer sociedade minimamente desenvolvida – e é inaceitável que uma cidade de mais de 10 milhões de habitantes vire refém de um bando de marginais. O impacto de mais alguns dias como hoje, sob todos os prismas (econômico, social, psicológico, e por aí vai) não pode ser desprezado. O Brasil deveria tomar esses acontecimentos como o seu 11 de Setembro, e aproveitar para reformular toda a sua política de segurança pública. Bons exemplos não faltam em todo o mundo - não é preciso inovar, basta copiar! Não pode ser tão difícil. Também é inaceitável o fato de brigas políticas serem levadas em conta quando o que está em jogo é a tranqüilidade dos cidadãos: se a presença de tropas federais for necessária, elas devem ser convocadas – por mais que isso certamente seja usado com propósitos eleitoreiros, posteriormente (me enoja só o pensamento de ver Lula na TV dizendo que “salvou a São Paulo do PSDB da barbárie”).

Aliás, creio que as ações dos últimos dias terão um impacto nas intenções de voto para Geraldo Alckmin – maior do que a possível descoberta de contas suspeitas no exterior em nome do presidente Lula. Não importa se esse juízo de valor é certou ou errado; o fato é que Alckmin provavelmente pagará por ter varrido para debaixo do tapete um problema crucial. Como um amigo me disse hoje, de forma muito consciente, nada do que estamos vendo deveria ser surpresa, já que a situação geral da segurança pública não mudou de um dia para o outro – apenas levantaram um pouco o tal tapete.

Amartya Sen, o genial economista indiano, definiu desenvolvimento como liberdade, simples assim. Também por essa medida, nosso Brasil vai muito mal das pernas. Hoje eu gostaria de estar celebrando meu aniversário com os amigos, sem dor de cabeça alguma. Estou em casa, contra a minha vontade – por mais que eu não sinta medo, tenho que respeitar a preocupação dos meus pais, que é perfeitamente legítima. O Estado para o qual eu contribuo, em forma de impostos, com uma fatia da minha renda que deveria me garantir serviços públicos comparáveis aos do primeiro mundo, me entrega uma segurança pública do nível do Sudão. O problema é muito mais complexo do que se pensa, e sua solução certamente passa por uma completa racionalização de como o Estado é organizado. Combatendo um déficit da previdência pública de absurdos 8% do PIB teríamos mais dinheiro para investir em segurança. Eliminando cargos públicos inúteis, também. Criando um sistema transparente de licitações e compras do governo, idem. E por aí vai. Este ano teremos eleições presidenciais, estaduais e do legislativo. Todo cidadão deveria dar seu voto para quem privilegia esse tipo de racionalidade.

No tempo que gastei escrevendo as linhas acima, ao menos uma conclusão terrível e inevitável substituiu a ausência de conclusões de alguns parágrafos passados: entre os dois candidatos com reais chances de assumir a presidência no próximo ano, um provavelmente será provado como o chefe da quadrilha que promoveu o maior assalto já visto neste país – e dinheiro desviado em esquemas de corrupção, adivinhe!, também pode ser usado para melhorar a segurança y otras cositas más. O outro, fazendo parte há doze anos do governo de São Paulo, fracassou retumbantemente na tarefa básica e essencial de garantir segurança e, por conseqüência, liberdade aos seus cidadãos. Trata-se, portanto, de escolher o menos pior. E é deprimente, muito deprimente, não ter a menor convicção de que essa escolha contribuirá para que, daqui a quatro anos, eu tenha plena liberdade para comemorar aqui os meus 30 anos, às vésperas do Mundial da África do Sul e com os meus possíveis filhos mencionados acima. A conclusão é egoísta, mas desse particular pode-se facilmente passar para uma triste generalização.

Em se tratando de Brasil, são preocupantes os momentos em que a seleção de futebol fica em segundo plano – mais ainda em ano de Copa. Hoje toda a imprensa deveria estar destacando e comentando a convocação do Parreira. E, no lugar disso, o que se vê em qualquer fonte de notícias é o horror, o horror...

quarta-feira, maio 03, 2006

Sai pra lá, encosto!















Pé de coelho, ramo de arruda, patuá, santinho de Santo Expedito benzido pelo bispo. Carranca, figa de Guiné, potinho de sal grosso, pimenta dedo de moça. Dente de porco do mato, máscara de couro de tamanduá. Foto do Tostão comemorando o quarto gol na final contra a Itália. Seleção de mandingas escalada e devidamente alocada em cima da televisão; ele jogou o chinelo num canto, abriu a cerveja geladíssima, se afundou no sofá, meteu um sorriso no rosto e a partida começou.