sexta-feira, setembro 02, 2005

Mogadiscio, Louisiana

Falta de condições sanitárias. Incêndios criminosos. Seqüestros. Tiroteios. Saques em lojas e residências. Ataques a helicópteros do exército. O que parece ser a descrição de uma cidade africana em meio a uma guerra civil é a descrição de New Orleans depois da passagem do furacão Katrina. A maior parte da cidade está submersa e 60 mil pessoas se amontoam em um estádio, em busca de socorro. Não se sabe ao certo quantas são as vítimas fatais, mas já se fala em milhares. Os sobreviventes se desesperam com a falta de perspectivas e se digladiam, lutando para preservar o que sobrou de suas vidas.

O caldeirão (“gumbo” para os nativos) de culturas no século XIX, que misturava descendentes de escravos negros, franceses, espanhóis e americanos, criou uma cidade vibrante, o berço de uma das formas de arte mais fascinantes de todos os tempos (estamos falando do jazz, evidentemente) e que, até bem pouco tempo, era sinônimo de alegria e brilho. O gênio do trompete Louis Armstrong nasceu em New Orleans, bem como o Mardi Gras, o equivalente yankee para o nosso carnaval. Esse símbolo de uma era se transformou, em poucas horas, num grande pântano, em mais um daqueles episódios inevitáveis que a dona Natureza manda de vez em quando para mostrar ao insignificante homem quem é que manda. Não há o que fazer para amenizar um furacão, o que resta é procurar abrigo e torcer para que os danos sejam os menores possíveis. Infelizmente, não foi o caso dessa vez.

“When the levee breaks we’ll have no place to stay”. O blues de Memphis Minnie, composto há quase oitenta anos e imortalizado pelo Led Zeppelin, já alertava: New Orleans repousava quase toda abaixo do nível do mar, protegida por várias barragens (as tais levees), que continham a água de um lago e do rio Mississippi. Uma vez rompidas essas barragens, a cidade submergiu. As fotos que se vêem na imprensa, quando vistas sem a legenda, sugerem algum lugar como Bangladesh depois das monções. Uma tragédia que se repete quase que a cada ano no sudeste asiático agora ali, no quintal do Tio Sam.

É chocante notar a transição radical, de uma cidade moderna e civilizada para um estado de barbárie. Um desastre da natureza conseguiu a proeza de transplantar um pedaço do continente negro em um dos orgulhos dos Estados Unidos. New Orleans é hoje um fascinante e trágico laboratório a céu aberto de ciências sociais, que nos mostra que o homem, em sua essência, é um animal como qualquer outro, cujo objetivo final é lutar pela sobrevivência a qualquer custo. Na ausência de uma ordem social, o que se mostra é isso, e todas as suas conseqüências: os saques, roubos e toda a violência citada acima. Definitivamente, o homem não é bom por natureza – é egoísta e sórdido, pensa em si mesmo acima de tudo e de todos e não vê a moral como um obstáculo para os seus atos (aqui caberia uma divagação psicanalítica, mas não tenho conhecimento para tanto e quem me lê já deve estar cansado da minha veia freudiana). É o que sobra quando não há mais nada a perder. Já deveríamos estar cansados e até mesmo enojados de ver situações desse tipo – a África como a conhecemos já tem um bom tempo de estrada - mas às vezes é preciso que aconteça onde menos se espera para que se enxergue a real proporção que a tentativa de preservar a vida pode tomar.

Não é difícil vislumbrar um futuro razoavelmente próximo para New Orleans. Passada a fase de maior turbulência, as águas vão baixar (literalmente e figurativamente). Serão contados os mortos e a cidade será reconstruída, com toda a rapidez que a economia mais rica do mundo poderá proporcionar. Será erguido um memorial para as vítimas ou algo do gênero, e todos os anos a data será lembrada com consternação. Enquanto isso, continuaremos a olhar para a África (e todo o resto do mundo subdesenvolvido – não o nosso subdesenvolvimento de país “emergente”, algo muito mais profundo e desesperador) como olhamos para Netuno ou para uma obra de ficção. A National Geographic Magazine foi muito feliz em estampar na capa a frase: “Africa. Whatever you thought, think again”. Que essa tragédia sirva pelo menos para que o mundo pense e repense o destino de toda a nossa espécie. Porque é inaceitável imaginar que uma pessoa que não teve a sorte de nascer num pedacinho do mundo que tenha as mínimas condições para se desenvolver uma vida digna e alegre mereça um destino tão pior do que o nosso.

Um comentário:

Anônimo disse...

Pergunta: quando você leu a notícia no jornal, a primeira coisa que passou pela sua cabeça foi "Nossa, coitados!" ou "Putz, perdi a chance de conhecer New Orleans!"? A resposta dessa pergunta talvez possa te dar umas dicas sobre a real natureza humana (ou pelo menos sobre a sua real natureza)...