O caldeirão (“gumbo” para os nativos) de culturas no século XIX, que misturava descendentes de escravos negros, franceses, espanhóis e americanos, criou uma cidade vibrante, o berço de uma das formas de arte mais fascinantes de todos os tempos (estamos falando do jazz, evidentemente) e que, até bem pouco tempo, era sinônimo de alegria e brilho. O gênio do trompete Louis Armstrong nasceu em New Orleans, bem como o Mardi Gras, o equivalente yankee para o nosso carnaval. Esse símbolo de uma era se transformou, em poucas horas, num grande pântano, em mais um daqueles episódios inevitáveis que a dona Natureza manda de vez em quando para mostrar ao insignificante homem quem é que manda. Não há o que fazer para amenizar um furacão, o que resta é procurar abrigo e torcer para que os danos sejam os menores possíveis. Infelizmente, não foi o caso dessa vez.
“When the levee breaks we’ll have no place to stay”. O blues de Memphis Minnie, composto há quase oitenta anos e imortalizado pelo Led Zeppelin, já alertava: New Orleans repousava quase toda abaixo do nível do mar, protegida por várias barragens (as tais levees), que continham a água de um lago e do rio Mississippi. Uma vez rompidas essas barragens, a cidade submergiu. As fotos que se vêem na imprensa, quando vistas sem a legenda, sugerem algum lugar como Bangladesh depois das monções. Uma tragédia que se repete quase que a cada ano no sudeste asiático agora ali, no quintal do Tio Sam.

É chocante notar a transição radical, de uma cidade moderna e civilizada para um estado de barbárie. Um desastre da natureza conseguiu a proeza de transplantar um pedaço do continente negro em um dos orgulhos dos Estados Unidos. New Orleans é hoje um fascinante e trágico laboratório a céu aberto de ciências sociais, que nos mostra que o homem, em sua essência, é um animal como qualquer outro, cujo objetivo final é lutar pela sobrevivência a qualquer custo. Na ausência de uma ordem social, o que se mostra é isso, e todas as suas conseqüências: os saques, roubos e toda a violência citada acima. Definitivamente, o homem não é bom por natureza – é egoísta e sórdido, pensa em si mesmo acima de tudo e de todos e não vê a moral como um obstáculo para os seus atos (aqui caberia uma divagação psicanalítica, mas não tenho conhecimento para tanto e quem me lê já deve estar cansado da minha veia freudiana). É o que sobra quando não há mais nada a perder. Já deveríamos estar cansados e até mesmo enojados de ver situações desse tipo – a África como a conhecemos já tem um bom tempo de estrada - mas às vezes é preciso que aconteça onde menos se espera para que se enxergue a real proporção que a tentativa de preservar a vida pode tomar.
Não é difícil vislumbrar um futuro razoavelmente próximo para New Orleans. Passada a fase de maior turbulência, as águas vão baixar (literalmente e figurativamente). Serão contados os mortos e a cidade será reconstruída, com toda a rapidez que a economia mais rica do mundo poderá proporcionar. Será erguido um memorial para as vítimas ou algo do gênero, e todos os anos a data será lembrada com consternação. Enquanto isso, continuaremos a olhar para a África (e todo o resto do mundo subdesenvolvido – não o nosso subdesenvolvimento de país “emergente”, algo muito mais profundo e desesperador) como olhamos para Netuno ou para uma obra de ficção. A National Geographic Magazine foi muito feliz em estampar na capa a frase: “Africa. Whatever you thought, think again”. Que essa tragédia sirva pelo menos para que o mundo pense e repense o destino de toda a nossa espécie. Porque é inaceitável imaginar que uma pessoa que não teve a sorte de nascer num pedacinho do mundo que tenha as mínimas condições para se desenvolver uma vida digna e alegre mereça um destino tão pior do que o nosso.
Um comentário:
Pergunta: quando você leu a notícia no jornal, a primeira coisa que passou pela sua cabeça foi "Nossa, coitados!" ou "Putz, perdi a chance de conhecer New Orleans!"? A resposta dessa pergunta talvez possa te dar umas dicas sobre a real natureza humana (ou pelo menos sobre a sua real natureza)...
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