segunda-feira, setembro 05, 2005

Sinal Fechado


(nota: este texto é duplamente desonesto. Primeiro, porque foi escrito há uns dois anos; segundo, porque foi feito em cima de uma música do Paulinho da Viola, depois gravada pelo Chico Buarque. Mesmo assim, passou pelo meu senso crítico e aqui está. Espero que os músicos citados acima não me processem pelo uso indevido.)

Ele vinha trafegando pela larga avenida, em quarta marcha. Viu o semáforo passar para amarelo, reduziu para a terceira. Freou quando a luz vermelha se acendeu. Na faixa a sua direita, parou um outro carro. Um modelo popular, prateado, bem cuidado. Carro de mulher, pensou. Olhou para o lado e reconheceu o rosto que estava ao volante. Quanta coincidência! Não podia ser por acaso, um reencontro desses acontecer num singelo cruzamento, num sinal fechado. Ela também o viu, os dois abaixam o vidro quase que simultaneamente. Ele sorri, ela corresponde, sem muita convicção. Depois de experimentar alguns instantes de completa paralisia, ainda baqueado pelo reencontro, ele diz, com a voz meio rouca:

- Olá, como vai?
- Eu vou indo, e você, tudo bem?

Meu Deus, todo aquele tempo passado e a mesma voz! Um pouco estridente, mas mesmo assim agradável. Agradável e fria, naquele encontro inesperado. Mas ela mudou, como mudou. O cabelo, antes tão negro, agora ostenta algumas mechas loiras. Não que tenha ficado mal, até que combinou com os olhos, castanho claros, quase cor de mel. Ela não usava óculos, mas ficam bem nela, dão um ar intelectual inesperado. Os lábios, ah, os lábios, esses permaneciam sensuais, convidativos. Estava bem vestida, nada a ver com o visual calça jeans-camiseta que ele tanto se acostumou a ver. E havia ainda uma mudança mais profunda – sem saber porque, ele a achou mais – como dizer – mais mulher. Todos aqueles anos... Finalmente ele lembrou-se de que tinha que falar alguma coisa, maldita timidez, achou que a experiência em lidar com tantas pessoas diferentes e desconhecidas no trabalho o tivesse livrado desse muitas vezes defeito, mas ele teima em voltar, justo nas horas em que deveria parecer seguro, decidido...

- Tudo bem, eu vou indo, correndo, pegar meu lugar no futuro, e você?

O que é isso?! “Pegar meu lugar no futuro”!!! A velha e estúpida mania de inventar expressões para impressionar. Mas ela não era suscetível a essas demonstraçõezinhas de inteligência e criatividade, anos de convivência a vacinaram. Péssimo, péssimo... Ela devolveu, com um sorriso de ironia:

- Tudo bem, eu vou indo, em busca de um sono tranquilo, quem sabe?

Ele não sabia, e continuava embasbacado. Quanta segurança, quanta convicção, quanto sarcasmo... em nada lembrava aquela adolescente frágil, que chorava ouvindo músicas de Tom e Vinícius. Ela o fitava, o mesmo sorriso no rosto, esperando, pensou ele, a próxima resposta idiota. E ele correspondeu:

- Quanto tempo...

Quanto tempo? Bastante, já que nenhum dos dois era capaz de precisar a última ocasião em que haviam se falado. Cinco anos? Talvez sete, ou até mais. Tanta coisa aconteceu... O fim da faculdade, o emprego, as promoções, a desilusão com a carreira. As aulas na universidade, a morte do pai, o futebol aos fins-de-semana. As viagens, ele que gostava tanto de viajar acabou o fazendo muito mais frequentemente por conta dos negócios. Os quilos engordados, os cabelos que caíram, os sonhos, alguns realizados, outros esquecidos e uns tantos guardados, esperando a hora de serem concretizados. A voz, estranha e tão habitual, o tirou desses pensamentos:

- Pois é, quanto tempo...

Dessa vez ele sentiu uma mudança naquele ar seguro de si que ela ostentava. Teria ela se lembrado de alguma coisa, algum momento especial? Ou seria uma simples resposta-clichê para uma afirmativa-clichê? Não havia tempo para muitos devaneios, o encontro estava fadado a ser breve.

- Me perdoe a pressa... é a alma dos nossos negócios.

Mais um clichê. Mas, que diabos, que obrigação temos em sempre usar expressões criativas? Isso é coisa para publicitários e seus egos inflados. Lembrou que um dia havia pensado em estudar publicidade, se gratifica por ter acertado ao menos uma vez na vida.

- Qual, não tem de quê. Eu também só ando a cem...

Pensou em dizer algo do tipo “então preste atenção aos postes”, ou “nunca se esqueça de usar o cinto de segurança”, mas já havia esgotado sua quota de frases engraçadinhas. O que será que ela está fazendo da vida? Estava bem vestida, parecia a caminho do trabalho. O carro não era dos mais caros, mas era novo. Teria conseguido construir uma carreira bem sucedida? Pós-graduação, cursos no exterior? Será que ela ainda morava com os pais? Podia ter se casado! Olhou apressadamente, tranqüilizou-se a não ver nenhum sinal de aliança na mão esquerda. Mas ela odiava usar jóias, dava muito bem para ter se dispensado dessa obrigação. Pensou em perguntar, mas ia pegar mal. E o sinal ia abrir logo, ele precisava dizer algo, rápido!

- Quando é que você telefona? Precisamos nos ver por aí...

Nem desconfiou que ela podia não ter mais o seu número. Ou que ele podia ter sido mudado, perdido, extinto. Muito menos desconfiou que sua frase pudesse ter soado pretensiosa, quase arrogante. Surpreendentemente, ela respondeu:

- Pra semana, prometo, talvez nos vejamos, quem sabe?

Que obra-prima de obscuridade! Ficou sem saber o que pensar. O tom não foi irônico, nem enfadonho. “Pra semana” significava em breve, estavam na terça-feira, podia ser até domingo... não, ela não vai querer fazer nada no fim-de-semana, deve ser cheia de amigos, tem a casa da família na praia, tudo o que ela não ia querer para os raros dias de descanso era sair com o ex-namorado. No máximo ia se permitir ir a algum bar, talvez um jantar em algum restaurante da moda. O “prometo” tornava tudo mais verossímil, ela não costumava deixar de cumprir suas promessas – por mais que ele, pessimista, tente buscar no passado uma ocasião em que ela faltou com a palavra, não consegue encontrar nenhuma. Sinceridade sempre foi uma de suas maiores virtudes – e um de seus piores defeitos, em algumas poucas ocasiões. Mas em seguida veio o “talvez”, estragando, deixando tudo muito vago e impreciso – mais ainda depois do “quem sabe?”, tudo para deixá-lo ainda mais confuso. E, confuso, ele repetiu:

- Quanto tempo...
- Pois é, quanto tempo...

Mais lembranças, o primeiro beijo, o cheiro de seus cabelos, as longas caminhadas, as decepções, os filmes que viram juntos, os livros que trocaram... que loucura, todo um passado comprimido num cruzamento, já não sabia se tinha agido certo ou se devia ter fingido que não viu e andado mais um pouco com o carro. Tanta coisa a perguntar, a dizer...

- Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das ruas.
- Eu também tenho algo a dizer, mas me foge à lembrança.

Mentira! Ela tinha a melhor memória que ele jamais encontrou. Era sempre ela que o lembrava de todas as datas, inicialmente as deles e depois dos aniversários de amigos e familiares. Ela nunca esqueceria algo a dizer, nunca... mas depois perdoou-a, tudo poderia ser dito em uma ocasião mais propícia. Fizeram o mais difícil, se encontraram sem querer, agora poderiam voltar a se falar, quem sabe se darem bem novamente, se gostaram tanto por tanto tempo...

- Por favor telefone, eu preciso beber alguma coisa, rapidamente.
- Pra semana...

Ele queria que ela ligasse em meia hora, quinze minutos, imediatamente! Sua curiosidade o maltratava, já imaginava os mil namorados que ela teve depois de deixá-lo, queria saber quais deles eram melhores que ele – quanto egoísmo! Queria voltar a entretê-la, falar dos discos que ouvira recentemente, da sua última viagem a África do Sul, olha, eu vi uma girafa na savana, não é tão grande quanto parece, além disso ela não consegue...

O sinal! A luz amarela já aparecia na outra avenida do cruzamento!

- O sinal...
- Eu procuro você.

Sentiu mais uma vez a velha sinceridade, acreditava nela, mesmo sem saber o que podia ter mudado em sua personalidade durante todos aqueles anos sem contato algum. Na transversal, o verde já despontava no semáforo.

- Vai abrir, vai abrir...
- Prometo, não esqueço.

Uma nova promessa, sem nenhum “talvez” ou “quem sabe” para atrapalhar. Sim, ia dar tudo certo, eles iam se ver novamente, conversar, coisas leves, sem traumas, finalmente poderiam ser amigos, haviam amadurecido o bastante para tornar isso possível. Viu a luz verde a sua frente, só havia tempo para mais um breve apelo:

- Por favor, não esqueça, não esqueça...

Os carros na frente da fila saíram, viu a pista livre a sua frente. Acabou o breve encontro, tudo estava nas mãos dela, como em tantas outras oportunidades.

- Adeus, adeus...

Não, adeus não! Tinha pavor de adeus, soava como algo definitivo, sem a menor possibilidade de volta... mas tinha de confiar nela, tinha, era só o que restava. Ela soltou o pé do freio e acelerou, decidida. Ele deixou uma lágrima escorrer pelo rosto cansado, viu o carro dela se afastar, um bicho de pelúcia, desses brindes de lanchonete fast food, grudado no vidro traseiro. Engatou a primeira, esperou que o carro de trás buzinasse e partiu, arrasado, porém com uma ponta de esperança.

5 comentários:

Anônimo disse...

Esse eu conhecia.

Anônimo disse...

Desonesto ou não, o texto ficou F-A-N-T-Á-S-T-I-C-O! É nessas horas que eu tenho certeza de que você é o melhor escritor que eu conheço pessoalmente...

Rodrigo, o Soneca, Pontes disse...

Aeee!! MUITO bom!!
E não fique dizendo que é desonesto, pq assim eu fico com peso na consciencia! haha Pq nenhum dos textos que publiquei ate agora são novos.. haha Todos da época em que tinha inspiração!
E tenho um também baseado em musica(s)...

Anônimo disse...

EXCELENTE, PJ!!! MUITO BOM MESMO!!! QUEM É SEU GHOST WRITER????? :-P
Parabéns!!!!

Anônimo disse...

HAHAHAHA... Que besta!!! postei o comentário como se fosse anônimo!!
Beijo na testa, Edu Pascale.