sexta-feira, junho 15, 2007

Rabbit, Run

Anteontem tive o imenso prazer de comparecer a um encontro com o escritor peruano Mario Vargas Llosa, por conta do relançamento, em Português, de dois dos seus romances: “A cidade e os cachorros”, a sua primeira obra do gênero, lançada na Espanha quando ele tinha apenas 26 anos e “Pantaleão e as visitadoras”, talvez seu livro de maior sucesso popular, de 1973. Vargas Llosa ganhou projeção fora do mundo literário em 1990, quando se candidatou à presidência do Peru. Com uma agenda radicalmente liberal e reformista, que visava recuperar o país do colapso econômico do primeiro mandato de Alan García e livrar o país do terror imposto pelo Sendero Luminoso, ele despontou inicialmente como grande favorito, sendo, porém ,derrotado nas últimas semanas de campanha por um obscuro engenheiro chamado Alberto Fujimori. Este passou à condição de ditador dois anos depois, em um bizarro “auto-golpe de estado”, que desviou mais uma vez o Peru do caminho da democracia. Posteriormente, Vargas Llosa narrou suas desventuras na corrida presidencial (alternadas com memórias de sua infância e adolescência) em “El pez em el agua” (que, salvo engano, não foi traduzido para o Português).

Embora curta, a trajetória política de Mario Vargas Llosa é tão excitante quanto a sua extensa carreira como escritor, e por isso fiquei um pouco decepcionado pelo fato de o debate ter se concentrado em aspectos literários. De qualquer forma, foi uma grande oportunidade para ouvir um grande escritor (talvez um dos mais importantes do mundo ainda vivo) falar sobre suas inspirações, influências (Sartre, Faulkner, Flaubert e o nosso Euclides da Cunha, que eu ainda, vergonhosamente, não consegui digerir), técnicas e estilo. Mas o que mais me impressionou foi, em resposta a uma pergunta da platéia sobre um possível “fim da literatura”, a defesa enfática e apaixonada feita por ele do livro, esse quase esquecido em nossos dias. Segundo ele, o livro, além de uma fonte inesgotável de prazer, é um promotor da democracia. Afinal, a leitura desperta o inquietamento e o questionamento: a boa literatura é provocativa, nos mostra novas maneiras de pensar e sentir, nos traz informações de outras regiões e culturas, nos incita a comparar e relativizar. Um cidadão que lê bastante é menos passível de ser ludibriado por seus governantes, e passa a ser um vigilante, um guardião do bom-senso e um combatente do autoritarismo. Ainda no pensamento de Vargas Llosa, as ditaduras costumam ter consciência desse poder da palavra escrita, frequentemente ceifando-o por meio da censura, direta ou indireta, e da perseguição a escritores.

Ainda que se possa argumentar que Vargas Llosa tenha exagerado na importância do livro para a democracia, sua postura é perfeitamente coerente com sua trajetória como intelectual. Ele sempre usou seus romances para denunciar a fraqueza institucional do Peru e sua pobreza e desigualdade. Ele é, parafraseando uma expressão aplicada ao grande Paulo Vanzolini, um intelectual “de unha suja”, que formou suas impressões a partir de viagens, experiências pessoais e um senso agudo de observação, aliado a uma crença inabalável no liberalismo e uma aversão às arbitrariedades de qualquer governo não-democrático. Poucos chegaram em seu nível de lucidez ao analisar os problemas crônicos da América Latina: ao invés de colocar a culpa de nossa pobreza e estagnação no “imperialismo”, na exploração capitalista e na busca incessante pelo lucro, ele costuma apontar como males maiores a incompetência e as tentações autoritárias dos nossos governantes, que, num círculo vicioso, se aproveitam da falta de educação do povo e a alimentam, para perpertuarem eles próprios e seus pequenos grupos de interesse no poder.

Resta pouca dúvida de que um dos caminhos mais diretos para se quebrar esse círculo é a universalização da educação e um trabalho árduo para a melhoria de sua qualidade (não basta o que foi feito, por exemplo, no Brasil - a transformação de legiões de completos analfabetos em legiões de analfabetos funcionais). Nesse sentido, tentando seguir a lógica aplicada por Vargas Llosa, seria justo afirmar que mais educação de qualidade implicaria em mais leitores (ou seja, demandantes de livros) críticos, contestadores e em condições de tomarem decisões conscientes e informadas. Sob essa ótica, é muito interessante observar uma estatística publicada pela Unesco (infelizmente atualizada apenas até 1996), que mede o número de novos títulos de livros lançados por ano em um grupo de países (que eu transformei para termos per capita, por razões óbvias). Não é preciso muito esforço para concluir que, com pouca dúvida, a oferta de novos títulos é uma função (dentre outros fatores) da demanda percebida por livros (duh...) e, consequentemente, do interesse da população de um determinado país por informação e conhecimento. O gráfico abaixo (clique para aumentar) deixa pouca dúvida de que Vargas Llosa está pelo menos vagamente correto. Os países no topo desse ranking são as democracias mais avançadas do mundo que, com frequência, aparecem na frente em comparações de outros diversos indicadores de desenvolvimento. Nosso Brasil e o Peru de Vargas Llosa fazem companhia a uma série de outros subdesenvolvidos, e devem continuar lá enquanto não passarem por profundas reformas (é curioso também observar como os Estados Unidos destoam de outros países ricos, mas isso é tema para outra longa análise).

Divagações econômicas à parte, a idéia era render uma homenagem a um dos mais brilhantes ficcionistas e intelectuais do nosso continente, na ocasião de sua passagem por São Paulo. É com esse espírito que encerro este texto. Devemos muito a Vargas Llosa pela qualidade de sua arte, mas deveríamos muito mais se passássemos a seguir seu inconformismo com a desonestidade, a ignorância e o obscurantismo que, muitas vezes, nos são impostos. Vida longa para "el conejo"!

2 comentários:

Anônimo disse...

Luciano, mto interesante a análise! Conheci seu blog através do mapa publicado pelo Riq no VnV e agora virei leitora!!!

Fico no aguardo da análise realtiva aos EUA!!! Na cabeça da maioria, EUA = NY, DC, California, Vale do Silício... esquecem-se do centro do país e dos interiores, onde as realidades são bem diferentes e bem menos letradas... ou pelo menos é essa a impressão que tenho!

Abraços e parabéns pelo blog!

PJ disse...

Obrigado, Carla! Eu ainda preciso aprender um monte sobre Estados Unidos para chegar em alguma conclusão, mas acho que você tem razão... a impressão que tenho é que é um país que ficou rico tão rápido que acho que poderia deixar alguns fatores para trás - cultura, por exemplo.