quarta-feira, setembro 07, 2005

Três Ilustres Conhecidos

Albert Ayler foi um dos grandes saxofonistas do free jazz.O Free jazz, como se sabe, teve origem quando todos surtaram e decidiram que essa história de ritmo, melodia e harmonia tinha ficado para trás e podia ser jogada no lixo. Cada músico faz o que der na telha, liga-se o gravador e tem-se um disco completamente original e impossível de ser reproduzido em outra ocasião. É indigesto à primeira audição (algumas vezes à segunda, terceira, quarta...), mas, como algumas outras boas coisas da vida, você só passa a descobrir o prazer implícito naquilo depois de algum tempo de adaptação e experimentação. Algo como ter uma recompensa por tanto insistir. Enfim, Ayler era um radical mesmo entre os radicais. O seu sopro é inconfundível: ríspido, intenso, com muito vibrato. Obviamente era um maluco: um dos seus discos chama-se “Music is the Healing Force of the Universe”, que é uma boa pista da relação que ele tinha com a música. Ayler considerava-se uma espécie de enviado dos céus, suas performances teriam uma inspiração divina e tinham por missão espalhar a paz pelo mundo. Seu mentor musical e espiritual na Terra não podia ser outro que não um tal de John Coltrane. Outra influência na sua música foram as marchas militares, já que ele serviu por um tempo no exército americano. Sua passagem pela vida foi intensa e rápida: seu corpo foi encontrado boiando em um rio de Nova York. Até hoje não se sabe a causa da morte.

Sonny Rollins foi e ainda é um colosso do saxofone tenor (como ele mesmo já se intitulou), um dos maiores da história. Foi um improvisador magistral, com solos longos e incrivelmente coesos. Passa a impressão de ter domínio completo de sua música e do seu instrumento, a segurança e o equilíbrio em pessoa. Em 1959, aos 29 anos e no auge da carreira, Rollins deixou de lado toda a segurança e o equilíbrio e desapareceu, deixando de se apresentar e de gravar. Por dois anos os admiradores do jazz ficaram se perguntando o que teria o motivado a tomar uma atitude tão radical. Dizem que Sonny era visto com o seu instrumento à noite, sozinho, sobre uma ponte, tocando para as águas do rio. Ao que parece, Sonny Rollins chegou ao auge muito cedo, e talvez tenha sido tocado pelo mesmo sentimento que levou outros gênios – Jimi Hendrix, Charlie Parker, Maradona, e a lista vai longe – o que fazer quando se percebe que o caminho à frente levará, inevitavelmente, à decadência? Alguns optam pela auto-destruição. Ele optou pela reflexão, pela busca do amadurecimento. Demorou, mas deve ter encontrado. Voltou à cena musical com o brilhantismo habitual e segue, até hoje, encantando os seus ouvintes.

Niels-Henning Ørsted Pedersen é o contrabaixista de nome mais cool da história do jazz - qual outro tem essa letra-conjunto vazio no sobrenome? Algum leitor nórdico poderia me corrigir e dar o nome correto da letra – Niels-Henning nasceu na Dinamarca. Os americanos, com a sua tão característica praticidade, juntaram suas iniciais e optaram por chamá-lo simplesmente Nhop. Nhop morreu em abril deste ano, com apenas 58 anos, depois de ter tocado com boa parte dos monstros sagrados do jazz e chegar a ser chamado de “Paganini do contrabaixo”.

A história do jazz e de seus protagonistas é tão ou mais interessante do que a música em si. A liberdade (talvez o mais sublime e ambíguo dos sentimentos) que se percebe ao ouvir ou ler a respeito é o grande legado que esses e tantos outros homens excepcionais nos deixaram. Um brinde a eles.

segunda-feira, setembro 05, 2005

Sinal Fechado


(nota: este texto é duplamente desonesto. Primeiro, porque foi escrito há uns dois anos; segundo, porque foi feito em cima de uma música do Paulinho da Viola, depois gravada pelo Chico Buarque. Mesmo assim, passou pelo meu senso crítico e aqui está. Espero que os músicos citados acima não me processem pelo uso indevido.)

Ele vinha trafegando pela larga avenida, em quarta marcha. Viu o semáforo passar para amarelo, reduziu para a terceira. Freou quando a luz vermelha se acendeu. Na faixa a sua direita, parou um outro carro. Um modelo popular, prateado, bem cuidado. Carro de mulher, pensou. Olhou para o lado e reconheceu o rosto que estava ao volante. Quanta coincidência! Não podia ser por acaso, um reencontro desses acontecer num singelo cruzamento, num sinal fechado. Ela também o viu, os dois abaixam o vidro quase que simultaneamente. Ele sorri, ela corresponde, sem muita convicção. Depois de experimentar alguns instantes de completa paralisia, ainda baqueado pelo reencontro, ele diz, com a voz meio rouca:

- Olá, como vai?
- Eu vou indo, e você, tudo bem?

Meu Deus, todo aquele tempo passado e a mesma voz! Um pouco estridente, mas mesmo assim agradável. Agradável e fria, naquele encontro inesperado. Mas ela mudou, como mudou. O cabelo, antes tão negro, agora ostenta algumas mechas loiras. Não que tenha ficado mal, até que combinou com os olhos, castanho claros, quase cor de mel. Ela não usava óculos, mas ficam bem nela, dão um ar intelectual inesperado. Os lábios, ah, os lábios, esses permaneciam sensuais, convidativos. Estava bem vestida, nada a ver com o visual calça jeans-camiseta que ele tanto se acostumou a ver. E havia ainda uma mudança mais profunda – sem saber porque, ele a achou mais – como dizer – mais mulher. Todos aqueles anos... Finalmente ele lembrou-se de que tinha que falar alguma coisa, maldita timidez, achou que a experiência em lidar com tantas pessoas diferentes e desconhecidas no trabalho o tivesse livrado desse muitas vezes defeito, mas ele teima em voltar, justo nas horas em que deveria parecer seguro, decidido...

- Tudo bem, eu vou indo, correndo, pegar meu lugar no futuro, e você?

O que é isso?! “Pegar meu lugar no futuro”!!! A velha e estúpida mania de inventar expressões para impressionar. Mas ela não era suscetível a essas demonstraçõezinhas de inteligência e criatividade, anos de convivência a vacinaram. Péssimo, péssimo... Ela devolveu, com um sorriso de ironia:

- Tudo bem, eu vou indo, em busca de um sono tranquilo, quem sabe?

Ele não sabia, e continuava embasbacado. Quanta segurança, quanta convicção, quanto sarcasmo... em nada lembrava aquela adolescente frágil, que chorava ouvindo músicas de Tom e Vinícius. Ela o fitava, o mesmo sorriso no rosto, esperando, pensou ele, a próxima resposta idiota. E ele correspondeu:

- Quanto tempo...

Quanto tempo? Bastante, já que nenhum dos dois era capaz de precisar a última ocasião em que haviam se falado. Cinco anos? Talvez sete, ou até mais. Tanta coisa aconteceu... O fim da faculdade, o emprego, as promoções, a desilusão com a carreira. As aulas na universidade, a morte do pai, o futebol aos fins-de-semana. As viagens, ele que gostava tanto de viajar acabou o fazendo muito mais frequentemente por conta dos negócios. Os quilos engordados, os cabelos que caíram, os sonhos, alguns realizados, outros esquecidos e uns tantos guardados, esperando a hora de serem concretizados. A voz, estranha e tão habitual, o tirou desses pensamentos:

- Pois é, quanto tempo...

Dessa vez ele sentiu uma mudança naquele ar seguro de si que ela ostentava. Teria ela se lembrado de alguma coisa, algum momento especial? Ou seria uma simples resposta-clichê para uma afirmativa-clichê? Não havia tempo para muitos devaneios, o encontro estava fadado a ser breve.

- Me perdoe a pressa... é a alma dos nossos negócios.

Mais um clichê. Mas, que diabos, que obrigação temos em sempre usar expressões criativas? Isso é coisa para publicitários e seus egos inflados. Lembrou que um dia havia pensado em estudar publicidade, se gratifica por ter acertado ao menos uma vez na vida.

- Qual, não tem de quê. Eu também só ando a cem...

Pensou em dizer algo do tipo “então preste atenção aos postes”, ou “nunca se esqueça de usar o cinto de segurança”, mas já havia esgotado sua quota de frases engraçadinhas. O que será que ela está fazendo da vida? Estava bem vestida, parecia a caminho do trabalho. O carro não era dos mais caros, mas era novo. Teria conseguido construir uma carreira bem sucedida? Pós-graduação, cursos no exterior? Será que ela ainda morava com os pais? Podia ter se casado! Olhou apressadamente, tranqüilizou-se a não ver nenhum sinal de aliança na mão esquerda. Mas ela odiava usar jóias, dava muito bem para ter se dispensado dessa obrigação. Pensou em perguntar, mas ia pegar mal. E o sinal ia abrir logo, ele precisava dizer algo, rápido!

- Quando é que você telefona? Precisamos nos ver por aí...

Nem desconfiou que ela podia não ter mais o seu número. Ou que ele podia ter sido mudado, perdido, extinto. Muito menos desconfiou que sua frase pudesse ter soado pretensiosa, quase arrogante. Surpreendentemente, ela respondeu:

- Pra semana, prometo, talvez nos vejamos, quem sabe?

Que obra-prima de obscuridade! Ficou sem saber o que pensar. O tom não foi irônico, nem enfadonho. “Pra semana” significava em breve, estavam na terça-feira, podia ser até domingo... não, ela não vai querer fazer nada no fim-de-semana, deve ser cheia de amigos, tem a casa da família na praia, tudo o que ela não ia querer para os raros dias de descanso era sair com o ex-namorado. No máximo ia se permitir ir a algum bar, talvez um jantar em algum restaurante da moda. O “prometo” tornava tudo mais verossímil, ela não costumava deixar de cumprir suas promessas – por mais que ele, pessimista, tente buscar no passado uma ocasião em que ela faltou com a palavra, não consegue encontrar nenhuma. Sinceridade sempre foi uma de suas maiores virtudes – e um de seus piores defeitos, em algumas poucas ocasiões. Mas em seguida veio o “talvez”, estragando, deixando tudo muito vago e impreciso – mais ainda depois do “quem sabe?”, tudo para deixá-lo ainda mais confuso. E, confuso, ele repetiu:

- Quanto tempo...
- Pois é, quanto tempo...

Mais lembranças, o primeiro beijo, o cheiro de seus cabelos, as longas caminhadas, as decepções, os filmes que viram juntos, os livros que trocaram... que loucura, todo um passado comprimido num cruzamento, já não sabia se tinha agido certo ou se devia ter fingido que não viu e andado mais um pouco com o carro. Tanta coisa a perguntar, a dizer...

- Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das ruas.
- Eu também tenho algo a dizer, mas me foge à lembrança.

Mentira! Ela tinha a melhor memória que ele jamais encontrou. Era sempre ela que o lembrava de todas as datas, inicialmente as deles e depois dos aniversários de amigos e familiares. Ela nunca esqueceria algo a dizer, nunca... mas depois perdoou-a, tudo poderia ser dito em uma ocasião mais propícia. Fizeram o mais difícil, se encontraram sem querer, agora poderiam voltar a se falar, quem sabe se darem bem novamente, se gostaram tanto por tanto tempo...

- Por favor telefone, eu preciso beber alguma coisa, rapidamente.
- Pra semana...

Ele queria que ela ligasse em meia hora, quinze minutos, imediatamente! Sua curiosidade o maltratava, já imaginava os mil namorados que ela teve depois de deixá-lo, queria saber quais deles eram melhores que ele – quanto egoísmo! Queria voltar a entretê-la, falar dos discos que ouvira recentemente, da sua última viagem a África do Sul, olha, eu vi uma girafa na savana, não é tão grande quanto parece, além disso ela não consegue...

O sinal! A luz amarela já aparecia na outra avenida do cruzamento!

- O sinal...
- Eu procuro você.

Sentiu mais uma vez a velha sinceridade, acreditava nela, mesmo sem saber o que podia ter mudado em sua personalidade durante todos aqueles anos sem contato algum. Na transversal, o verde já despontava no semáforo.

- Vai abrir, vai abrir...
- Prometo, não esqueço.

Uma nova promessa, sem nenhum “talvez” ou “quem sabe” para atrapalhar. Sim, ia dar tudo certo, eles iam se ver novamente, conversar, coisas leves, sem traumas, finalmente poderiam ser amigos, haviam amadurecido o bastante para tornar isso possível. Viu a luz verde a sua frente, só havia tempo para mais um breve apelo:

- Por favor, não esqueça, não esqueça...

Os carros na frente da fila saíram, viu a pista livre a sua frente. Acabou o breve encontro, tudo estava nas mãos dela, como em tantas outras oportunidades.

- Adeus, adeus...

Não, adeus não! Tinha pavor de adeus, soava como algo definitivo, sem a menor possibilidade de volta... mas tinha de confiar nela, tinha, era só o que restava. Ela soltou o pé do freio e acelerou, decidida. Ele deixou uma lágrima escorrer pelo rosto cansado, viu o carro dela se afastar, um bicho de pelúcia, desses brindes de lanchonete fast food, grudado no vidro traseiro. Engatou a primeira, esperou que o carro de trás buzinasse e partiu, arrasado, porém com uma ponta de esperança.

sexta-feira, setembro 02, 2005

Mogadiscio, Louisiana

Falta de condições sanitárias. Incêndios criminosos. Seqüestros. Tiroteios. Saques em lojas e residências. Ataques a helicópteros do exército. O que parece ser a descrição de uma cidade africana em meio a uma guerra civil é a descrição de New Orleans depois da passagem do furacão Katrina. A maior parte da cidade está submersa e 60 mil pessoas se amontoam em um estádio, em busca de socorro. Não se sabe ao certo quantas são as vítimas fatais, mas já se fala em milhares. Os sobreviventes se desesperam com a falta de perspectivas e se digladiam, lutando para preservar o que sobrou de suas vidas.

O caldeirão (“gumbo” para os nativos) de culturas no século XIX, que misturava descendentes de escravos negros, franceses, espanhóis e americanos, criou uma cidade vibrante, o berço de uma das formas de arte mais fascinantes de todos os tempos (estamos falando do jazz, evidentemente) e que, até bem pouco tempo, era sinônimo de alegria e brilho. O gênio do trompete Louis Armstrong nasceu em New Orleans, bem como o Mardi Gras, o equivalente yankee para o nosso carnaval. Esse símbolo de uma era se transformou, em poucas horas, num grande pântano, em mais um daqueles episódios inevitáveis que a dona Natureza manda de vez em quando para mostrar ao insignificante homem quem é que manda. Não há o que fazer para amenizar um furacão, o que resta é procurar abrigo e torcer para que os danos sejam os menores possíveis. Infelizmente, não foi o caso dessa vez.

“When the levee breaks we’ll have no place to stay”. O blues de Memphis Minnie, composto há quase oitenta anos e imortalizado pelo Led Zeppelin, já alertava: New Orleans repousava quase toda abaixo do nível do mar, protegida por várias barragens (as tais levees), que continham a água de um lago e do rio Mississippi. Uma vez rompidas essas barragens, a cidade submergiu. As fotos que se vêem na imprensa, quando vistas sem a legenda, sugerem algum lugar como Bangladesh depois das monções. Uma tragédia que se repete quase que a cada ano no sudeste asiático agora ali, no quintal do Tio Sam.

É chocante notar a transição radical, de uma cidade moderna e civilizada para um estado de barbárie. Um desastre da natureza conseguiu a proeza de transplantar um pedaço do continente negro em um dos orgulhos dos Estados Unidos. New Orleans é hoje um fascinante e trágico laboratório a céu aberto de ciências sociais, que nos mostra que o homem, em sua essência, é um animal como qualquer outro, cujo objetivo final é lutar pela sobrevivência a qualquer custo. Na ausência de uma ordem social, o que se mostra é isso, e todas as suas conseqüências: os saques, roubos e toda a violência citada acima. Definitivamente, o homem não é bom por natureza – é egoísta e sórdido, pensa em si mesmo acima de tudo e de todos e não vê a moral como um obstáculo para os seus atos (aqui caberia uma divagação psicanalítica, mas não tenho conhecimento para tanto e quem me lê já deve estar cansado da minha veia freudiana). É o que sobra quando não há mais nada a perder. Já deveríamos estar cansados e até mesmo enojados de ver situações desse tipo – a África como a conhecemos já tem um bom tempo de estrada - mas às vezes é preciso que aconteça onde menos se espera para que se enxergue a real proporção que a tentativa de preservar a vida pode tomar.

Não é difícil vislumbrar um futuro razoavelmente próximo para New Orleans. Passada a fase de maior turbulência, as águas vão baixar (literalmente e figurativamente). Serão contados os mortos e a cidade será reconstruída, com toda a rapidez que a economia mais rica do mundo poderá proporcionar. Será erguido um memorial para as vítimas ou algo do gênero, e todos os anos a data será lembrada com consternação. Enquanto isso, continuaremos a olhar para a África (e todo o resto do mundo subdesenvolvido – não o nosso subdesenvolvimento de país “emergente”, algo muito mais profundo e desesperador) como olhamos para Netuno ou para uma obra de ficção. A National Geographic Magazine foi muito feliz em estampar na capa a frase: “Africa. Whatever you thought, think again”. Que essa tragédia sirva pelo menos para que o mundo pense e repense o destino de toda a nossa espécie. Porque é inaceitável imaginar que uma pessoa que não teve a sorte de nascer num pedacinho do mundo que tenha as mínimas condições para se desenvolver uma vida digna e alegre mereça um destino tão pior do que o nosso.